Ouvi falar desse livro recentemente, por acaso, através do blog de traduções Malocchio e do comentário extremamente elogioso do The Untranslated (que faz uma ótima introdução à obra e ao autor), que logo me deixaram curioso. Um calhamaço insano de mais de mil páginas, de um autor italiano contemporâneo, que nunca foi traduzido em lugar nenhum... Baixei a edição digital e comecei a ler. Segue a tradução dos breves primeiros cinco capítulos.
CANTOS DO CAOS
de Antonio Moresco
PRIMEIRA PARTE
Prefácio
Leitor insubmisso, se você é daqueles que ainda esperam por uma obra-prima, tenho aqui para você um escritor igualmente idiota que meteu na cabeça a ideia de escrever uma obra-prima.
Entro imediatamente no cerne da questão. Me apresento: sou um conhecido editor. Um tempo atrás, num momento difícil e delicado da minha vida, me envolvi com um sujeito, um escritor que trabalhava sozinho há muitos anos. Trouxe ele para passar um tempo na editora, deixei ele me levar por certos projetos, enrolei ele um pouco. Ainda mais porque já tínhamos nos conhecido, no passado... Mas eu não podia publicar o seu livro, expliquei a ele de todas as formas possíveis que ninguém mais quer livros vastos, absolutos, jornadas longas, não agradam o mercado, todo mundo torce o nariz, apenas decalques literários, disparates, aforismos, para se ler com o controle remoto na mão e o fone do walkman nas orelhas.
"Veja bem, ninguém mais se interessa por essas coisas!", disse a ele. "Agora os homens têm portões de garagem automáticos, as mulheres têm vibradores! Pensa como hoje seria fácil para você finalmente aprender o ofício, agora que já navegou por vastas estruturas e ondas enormes, elaborar coisinhas de cem, duzentas páginas, fazer primeiro um belo esqueminha, uma escaleta, cada vez mais e mais fácil, cada vez mais bem-sucedido, cada vez mais bem-acabado, quantos belos trabalhinhos um atrás do outro até o dia da sua morte, um a cada um, dois anos, desfrutar os últimos instantes que restam a você, à literatura, para escavar ao menos alguma coisa, enquanto vastos conglomerados econômico-culturais-multimídia ainda arrastam uma caricatura desse gênero cada vez mais marginal, os últimos ritos, os últimos dividendos, em projetos reciclados e já ultrapassados."
Repeti a ele infinitas vezes. Fiquei rouco.
Não teve jeito!
"Estou com uma ideia, uma ideia na cabeça...", me disse na noite passada, do nada. Não conseguia sequer falar, embolava tudo.
"Que ideia? Que ideia?", tentei fazer ele desembuchar.
Fui dando corda, dei bebida para ele.
"Você quer dizer uma obra-prima? Um livro histórico?"
"Não, não! Quem se importa com isso!", balbuciou.
Não consegui arrancar mais nada da boca dele. Vai dar uma volta de noite, sozinho, às cegas, pela rua. Não dá para entender que ideia ele tem na cabeça. Num instante quer escrever um grande livro cômico, no instante seguinte um trágico. Não dá para saber nem se ele vai conseguir mesmo botar aquilo para fora, não dá para entender se ele está com tudo em ordem na cabeça, se não é ele quem está enrolando a nós todos. E além disso ele também não me parece muito bem de saúde, anda acometido por cegueiras, crises de nervos, enxaquecas, insônias, dores nas juntas, pré-natais, menstruais, de vez em quando as pernas fraquejam enquanto caminha, sofre vertigens, escorrega.
"Está bem! Está bem!", desisti por fim. "Enquanto isso, escrevo o prefácio para você. O livro vai vir, de um jeito ou de outro. Se já tiver o prefácio, necessariamente o resto vem em seguida!"
Mas e se depois ele mudar de ideia e não escrever o livro, digo a mim mesmo, ou então e se ele não for capaz, e se de tanto exagerar ele fracassar, descarrilhar? Então, quer dizer que vamos achar algum outro para escrevê-lo. Um ou outro, mais cedo ou mais tarde, com certeza irá escrevê-lo. O importante é que o prefácio esteja pronto, assim o principal já está feito!
"Vamos deixar uma coisa clara!", disse a ele. "Não pense que vou me contentar com um papel de editor passivo, de quando já está tudo mastigado. Eu também vou meter o bedelho, vou lhe interromper, vou lhe aconselhar."
Disse a ele tudo de uma vez, diretamente. Não entendi como ele levou isso. Sorriu para mim. Mas afinal não sei se sorriu de verdade. Será que alguém já viu os dentes dele? Digamos que sim! Discerne-se apenas um pouco de uma massa meio esbranquiçada entre os lábios, quando abre um pouco mais aquela sua espécie de boca. Não dá para entender se são dentes ou se está mastigando um pedaço de Polenguinho com as gengivas. Ficamos nos encarando em silêncio por um tempo... Ah, já ia me esquecendo: ele me apelidou de "o Gato", eu apelidei ele de "o Louco".
E assim, cá estou eu a trabalhar. Estou escrevendo um prefácio para um livro que ainda não existe, nesta época oscilante entre dois séculos, entre dois milênios. E, quem sabe, talvez, como em outras épocas, justo quando parece mais impossível, mais inconcebível... Sempre surge alguém querendo quebrar a cabeça de novo. Você se vira e topa com ele como se não houvesse nada em sua frente, está sempre ali numa esquinazinha à espreita, com a mesma eterna cara de cá-estou.
"Trinta anos de ilusões, de desilusões, de injúrias", estará provavelmente pensando ele neste momento, na sua cabecinha, "de colírios, de supositórios, de prescrições, de fungicidas, de meias furadas, de excreções, de secreções. E agora finalmente chegou a hora. Começou, partiu!"
Breve relatório de onde está ocorrendo o acontecimento e de que horas são.
"São vinte para as treze. Daqui a pouco vou urinar na pia, depois vou abrir uma latinha de atum, vou acrescentar um pouco de água ao conteúdo de um daqueles pacotes de sopa liofilizada, mexendo ocasionalmente na panela, vou descascar uma maçã. Vejo, pela janela que fica por cima da mesinha de onde escrevo, os japoneses na varanda da frente tirando as cuecas do varal. São um mais magro que o outro, mas ainda assim as cuecas são incrivelmente largas e arregaçadas. Vão esvoaçar como mantos sobre suas virilhas! Minhas vertigens voltaram há alguns dias. A cama está desarrumada, o quintal está em silêncio, no quarto não se ouve nem o voar de uma mosca. A casa está vazia. O telefone está desconectado. Estou só."
Bom trabalho, idiota!
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"E então, viu? Fiz o seu prefácio!"
"Mas prefácio do quê?"
"Como assim, 'do quê'! Conto um pouco de como nasceu a ideia, os precursores... a Ilíada, a Divina Comédia, o Decamerão, Dom Quixote, Moby Dick, Os Irmãos Karamázov, A Pequena Vendedora de Fósforos, e quanto mais tiver mais a gente coloca..."
"Está brincando? E o que que A Pequena Vendedora de Fósforos tem a ver?"
"Tem a ver, tem a ver! Verá que tem a ver! E poderia listar ainda outros. Ninguém mais ousa colocar-se ante o próprio tempo com um tal olhar!"
"Mas não aconteceu nada disso! Ainda não nasceu porcaria nenhuma!"
"Eu sei, eu sei, mas isso não importa! Mais um motivo para começarmos a realmente pôr a mão na massa!"
"E o que você tem a ver com isso? Por que está usando a primeira pessoa do plural?"
"Tenho tudo a ver! Enquanto seu editor..."
"Meu editor? Mas você nunca publicou nada meu!"
"Justamente por isso e, diria eu, precisamente e sobretudo por isso! Mas já chega. Depois de todo esse blá blá blá que fizemos até agora, podemos começar a realmente fazer as coisas. Vamos dar voz a tudo aquilo que até hoje nunca teve voz. Coloquemos a ilusão do movimento e a da imobilidade, descolemos os planos, os tempos, os espaços, façamo-los girar e incendiar, façamos girar as rodas que estão paradas há quase um milênio, há quase meio milênio pelo menos... Avante, mostre-me o que você fez até agora!"
"Mas eu não fiz nada!"
"Impossível! Deve ter saído alguma coisinha, nesse tempo todo!"
"Mas não, nada, lhe garanto! Tinha tido só uma meia ideia de contar uma coisinha pequena... Mas afinal não a escrevi."
"Aí está, viu? Do que se trata?
"Nada... é só uma besteira, um sonho."
"Continua! Quero ouvir!"
O despertar
No início eu não estava em lugar nenhum, e porém eu existia.
Não sentia nada, não percebia nada. Apenas, de tanto em tanto, uma sensação pneumática de movimento. "Entendi, sou o oceano!", disse a mim mesmo. "E estes são os meus movimentos cegos, marés, fluxos, correntes..."
Depois, mais nada, de novo. Só escuridão e silêncio. "Vou tentar abrir os olhos", pensei. Mas eu não entendia se tinha olhos ou se eu era só água densa em água densa, polpa de água, projeto de membrana. "Mas então talvez eu me encontre no elemento amniótico, ainda seja substrato virtual, pré-natal!", pensei por um instante. Sentia ondas e espaços passando, planetas, massas de luz cheia. Tudo em chamas e embolado, frio. Engolido de novo. Eu caía. Talvez gritasse. Impossível vazar daquilo. A saída distante, cada vez mais distante. Retornar à tumba cega e fervente, nadar em meio a ciliados, irrealizados! Impossível ir, impossível voltar. Gritar e depois continuar gritando, no elemento mole que não lembra nada, que não sente nada. Impossível qualquer movimento, somente gritar e depois continuar gritando, sem que ninguém possa escutar, possa decifrar. Ao menos poder apagar-se, poder retornar... Gritar, gritar, pode-se apenas gritar.
"Estou revivendo o horror do nascimento! Estou nascendo!", entendi de repente.
Eu tentava gritar com a boca recém-inventada, caindo de novo para trás. Em direção a quê, eu não sei. Em direção ao fundo onde não há mais fundo. Debatia para todos os lados aquilo que parecia ser minha cabeça. "Entendi: talvez esteja tendo pela enésima vez aquele eterno, terrível sonho em que não consigo despertar! E se não consigo despertar posso apenas morrer. Mas não consigo despertar e não consigo sequer não despertar. E não consigo morrer. Estou há muito tempo nesse interregno horrível. Mas afinal, será realmente um sonho? Contra o quê estou me debatendo? Será que se trata apenas dos mecanismos que presidem a passagem de uma a outra fase do sono, ou da vigília, que no meu caso eu pulei? Paro de respirar, preciso reconquistar no sono toda vez a possibilidade de ainda nascer, de ainda respirar. E o que acontece agora? Em qual espaço me é possível andar, em qual outro sonho, se sonho houver? O que acontece quando sonho e vigília extinguem-se e você não está mais em lugar algum e não pode mais sequer jogar a cabeça para trás e morrer? Cadê a porta de saída? Cadê a de entrada? Voltar atrás, pela lama do espaço, ao incriado, ao inconcebido. Poder morrer para trás, ao contrário, sem ter nascido e sequer sido concebido, sair até do projeto, do primeiro olhar, da matéria oceânica mole e revolta e viscosa..."
Eu debatia a minha cabeça, acho, aquela coisa aglutinada e felpuda que deveria estar lá onde costuma ficar a cabeça, sentia irradiar de algum lugar uma miríade de retas tortas, em fuga... Depois, por uma fração de segundo, parecia que eu estava passando uma mão pelos cabelos, duros e espetados, como uma almofada de alfinetes. "Mas então estou acordado!", entendi de repente. "E estou vivo!"
A minha mão tateava. Sob os dedos, algo que lembrava os contornos de um rosto. Depois, de repente, mais uma vez, nada. Engolido. "Ela deve ter ido parar dentro...", eu conjecturava. "Mas por que a boca é tão desmesurada? Parece um funil!" Alguma coisa se movia pelo escuro em algum lugar, por baixo, o círculo da minha cabeça ia se debatendo contra os outros círculos. Eu ia me ausentando. Esvaía e depois revinha. "Mas onde estou? Quem sou?" Algo subia pela minha garganta, eu sufocava e girava. "Mas é claro, são as vertigens!", me veio à mente. "Estou sofrendo um daqueles meus costumeiros episódios de vertigem que às vezes me pegam até durante o sono, entre a vigília e o sono, acometido pela náusea e pelo vômito, caio num estado de esvaimento, de desfalecimento, preciso tentar me virar num dos lados para ver ao menos o contorno da janela que está lá em algum lugar, aquele leve clarão entre as ripas da persiana que dá para distinguir até no meio da noite. Mas já fazia um tempo que eu não tinha um assim tão forte! Desde quando escrevia aquele outro livro... Como se chamava? Bah... quem se lembra! Algo como Os exórdios, acho. E eu os tinha direto, quando virava a cabeça no travesseiro, quando dormia, quando estava sentado e tinha de largar a caneta e me segurar com ambas as mãos naquela mesa redonda de madeira para não cair no chão. Mas agora eu entendi quem sou! Sou um escritor!"
Agora eu começava a sentir o meu coração, que batia com força. A boca continuava lá no alto, escancarada. "É isso, sou um escritor, e há muitos anos estou preparando uma nova obra, deixando-a crescer pouco a pouco, por si só, de dia e de noite. Quantos sonhos, quantos pensamentos, tudo já fora do tempo, num outro lugar, num outro espaço, numa outra dimensão, para ninguém, para nada, e finalmente estou prestes a começar. Agora, acordo de vez, me levanto, vou beber um copo d'água, pego a caneta na mão. Mas por que não posso me levantar? Onde estou?"
Os meus braços estavam como que moldados de um jeito diferente, encurtados. O funil da boca vibrava, estava dormente. "Mas por que não posso aumentar os braços?", pensava mais uma vez.
"Cadê a leve claridade da janela? E a luz de cabeceira? Por que não há sequer o interruptor que eu sempre encontro esticando às cegas uma mão para fora da cama? Por que ele não acende? Que horas são? E não há sequer sapatos e meias ao pé da cama. Não há sequer a cama. Ah... agora me lembro... Noite passada, pouco antes de me deitar, saí um pouco para caminhar e ver as luzes na rua. O que aconteceu àquela altura? Não vi nada, não entendi nada. Talvez eu tenha sido atingido por um carro, de repente, enquanto atravessava a rua e devaneava, talvez neste momento eu esteja em alguma ambulância acelerando com as sirenes ligadas pela rua deserta, no meio da noite... Mas não ouço sirene, não ouço nada, e não há sequer luz alguma, nem um rosto inclinado docemente sobre mim, e não há sequer aquela lona, não há ar, nenhum espaço para os meus braços. Apenas a boca escancarada e descentralizada. Mas porque ela vibra desse jeito? Oh, não! Acho que entendi. Estou gritando! Estou trancado aqui dentro, estou preso! Mas por que me enterraram, se estou vivo?!"
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"Você está de brincadeira?"
O Gato estava com os olhos arregalados, gesticulando ao mesmo tempo em que tentava acender o cigarro que segurava entre os lábios enquanto falava.
"Eu lhe disse que era só uma fantasia, uma besteira..."
"Mas não se pode mais fazer esse tipo de coisa! Hoje o que está na moda é o cômico, é a maluquice, supositórios orais, colírios anais, um pouco de surrealismo! A essa altura o leitor já caiu no sono faz tempo, já mudou de canal, já foi a uma agência de turismo reservar uma excursão com os cercopitecos brancos da Groenlândia, uma lua de mel na América Central nas costas de um tatu. E mais, essa história de enterrado vivo... Aquele americano bêbado já não tinha falado disso?"
"Era só o começo. Depois tomava um rumo completamente diferente, se você não tivesse me interrompido..."
"E além disso não tem diálogo! Se não tem diálogo ninguém vai ler!"
"Mas como pode ter diálogo numa situação dessas?"
"Não importa. Você é quem deve dar um jeito de colocar. É aí que reside a bravura de um escritor!"
A chama do seu isqueiro acendia sempre em lugares diferentes, não conseguia interceptar a ponta do cigarro que balançava.
"Entendeu?"
"Bah, não sei..."
Ouvi ele suspirar.
"Certo, certo, vamos em frente, vamos ouvir!"
As vozes
O meu coração tinha começado a pulsar ainda mais forte. Estardalhaçava. Eu sentia o decalque do meu corpo contra o espaço. As paredes me revestiam, eu as tateava com as mãos cheias de sangue, brilhantes, ainda mais porque há alguns instantes parecia que eu escutava vozes infinitamente abafadas, em algum ponto longínquo acima da minha cabeça. "Talvez o enterro tenha acabado de acontecer e ainda haja alguém parado falando por cima da sepultura. Ou me jogaram na cova mas ainda não jogaram a terra por cima de mim, é isso, há apenas essa tampa entre eu e o mundo, se em algum lugar houver mundo..."
A minha boca ainda estava escancarada e bloqueada, eu não entendia se dali não saía som algum ou se eu estava gritando tão forte a ponto de ficar surdo. "E talvez, se conseguir fazer com que me ouçam, ainda possam me tirar daqui, ainda posso fazer com que os vivos me ouçam, se em algum lugar ainda houver gente viva..."
E por alguns instantes parecia até mesmo, ou eu imaginava, ou sonhava, que eu já tinha conseguido fazer com que me tirassem dali, e que alguém estava falando comigo e quase me repreendendo:
"Mas o senhor deveria ter se esforçado mais para que lhe ouvissem!"
"Mas eu gritei, juro a você!", respondia eu com o pouco fôlego que ainda me restava.
"De toda forma, agora fique tranquilo, recomponha-se: você não é o único que passou por isso! Dê um jeito de processar logo essa experiência que, sinceramente, o senhor talvez tenha dramatizado um pouco demais, não acha?"
"Mas vocês não conseguiriam sequer remotamente imaginar o que acontece quando se está lá embaixo!"
"Acalme-se, acalme-se, ainda está com os olhos saltando das órbitas! Não vê que agora tudo já passou? E além do mais, sabe-se que, ao fim, os enterrados vivos sempre conseguem escapar..."
"Mas não é verdade! Apenas de vez em quando, sem que se saiba bem o por quê, por engano, por obstinação, e quem sabe quantos ainda não estão lá embaixo!"
Eu não entendia se estava com os olhos arregalados ou fechados. Na minha cabeça as vozes cessaram de repente. Mas agora parecia que eu estava escutando leves ruídos que poderiam também ser de passos. "Devem estar jogando o cascalho por cima", disse a mim mesmo, "por isso que sempre usam cascalho em cemitérios, para que os de baixo possam ouvi-lo cantar de vez em quando, e assim possam acompanhar os movimentos dos tais vivos..." Então, de novo um leve zumbido, mais perto dessa vez. Continuava, interrompia-se. Eram duas tonalidades completamente diferentes, como se duas pessoas estivessem paradas falando em cima da cova enquanto os outros talvez já tivessem ido embora, tivessem percorrido as vielas até a saída, tivessem entrado nos carros estacionados do lado de fora, no pátio, tivessem já dado a partida, estivessem já acelerando pelo emaranhado de ruas com os olhos sonolentos, isso admitindo que outros tivessem passado por ali e que o que eu parecia escutar por cima da minha cabeça fossem realmente vozes e não o barulho do vento que passava pelas vielas desertas, e fazia rolar pelo cascalho algumas latas de metal vazias, e as flores enferrujadas dentro delas, na hora em que o cemitério já estava vazio e deserto, fechado para o público, e talvez fosse noite, apenas as luminárias acesas em frente aos fornos enfileirados, o vigia concentrado assistindo uma fita pornô virado para a sua pequena televisão na cabine do lado da entrada, de pijamas e com a braguilha aberta, meio adormecido.
"Mas não, não está de noite!", ocorreu-me logo depois, porque após um longo intervalo as duas vozes voltaram a falar. "Talvez não tenham sequer parado", disse a mim mesmo, "talvez eu tenha apenas desmaiado." Escutava-as muito próximas agora, chegavam a mim até mesmo fragmentos de frases, de palavras. "Mas onde se meteram, aonde foram?", eu conjecturava. "Talvez estejam fumando um último cigarro antes de irem embora, segurando-o escondido na palma da mão porque aqui dentro deve ser proibido, meio virados de costas, de vez em quando erguem a voz, ouço até os seus suspiros, de vez em quando, ou é apenas aquele barulho que sai quando se exala fumaça com a cabeça um pouco inclinada para trás, com aquele gesto de tirar um pedaço de tabaco que na realidade nem ficou grudado nos lábios porque hoje em dia quase todos os cigarros têm filtro."
"Acredita em mim, acredita em mim", ouvi que uma das duas vozes dizia de repente, "tudo já foi dito, tudo já foi escrito, tudo já foi feito. Não há mais possibilidade de invenção, se sequer houve um dia. Agora pode-se apenas supervisionar o projeto, montar, combinar, contaminar, alguma descoberta visual aqui e ali, alguma poluição, deixa-se entrar, seleciona-se, experimenta-se um pouco aqui e um pouco acolá... Onde esse daqui queria chegar? O que ele queria fazer?"
"Mas é claro", dizia alguns instantes depois a voz do outro, mais baixa, mais gasta, "não há mais possibilidade de criação, isso já é sabido há um tempo, apenas fluxos entre fluxos, nexos que transportam nexos, escritório com a luz melhor, co-locações, usufrutos. Não sobrou espaço para atirar-se de cabeça no nada, para todo esse extremismo, toda essa infância. Foi bom para ele ter morrido logo antes de começar, poderíamos até dizer que na realidade essa foi a sua obra, o seu gesto inventivo, a sua marca: andar ao encontro da sua incriação com o passo leve, à noite, pela rua. Ninguém viu, ninguém ouviu, ninguém sabe quem bateu nele, todos estavam dormindo nas casas, talvez caminhasse no meio da rua enquanto fantasiava, talvez o outro estivesse dirigindo meio sonolento pela cidade deserta, os semáforos apagados, o atingiu em cheio, ou talvez o tenha ceifado na calçada mesmo, saindo da rua por um ataque de sono ou talvez intencionalmente, quem sabe..."
Eu adormecia, talvez desmaiasse. "Então é isso o que aconteceu!", dizia a mim mesmo de repente. "Aquelas pilhas de folhas bagunçadas continuam em cima da mesa, notas rabiscadas ao improviso enquanto caminhava pela rua ou acordava num sobressalto, à noite, e tateava em busca da caneta sobre a mesa de cabeceira, com a luz apagada. Ninguém vai conseguir entender nada, decifrá-las, menos ainda discernir as suas projeções, as suas encarnações..." Na minha cabeça voltara o silêncio. Ou melhor, escutava-se ainda aquele ruído de cascalho botado para cantar. Depois de novo uma daquelas duas vozes, a primeira. "Como está próxima, como parece próxima!", vinha-me à mente. "Parece que está sentado junto ao outro na beirada da cova, se ainda estiver aberta, e que se inclinou todo para a frente para que eu o escutasse melhor, com o seu pescoço esticado..."
"Que grandioso cerco foi essa tal de modernidade!", sentia que ele estava quase gritando com a voz estridente, aguda, como se tivesse se livrado da língua e dos dentes de uma vez só. "Com as suas utopias primeiro positivas e depois negativas, todas de uma forma ou outra ligadas à necessidade de zerar tudo, de horizontalizar tudo... Mas agora o ciclo se fechou. O que diabos esse daqui queria ou podia ou acreditava jamais poder fazer?"
A minha boca ainda estava aberta e descentralizada, não entendia se para gritar ou para respirar. Eu devia estar com os olhos arregalados. "Oh, que horror!", compreendi subitamente. "Que fedor! Por que ao menos não me taparam com aquelas compressas de gaze que enfiam dentro do reto? As minhas costas já devem estar completamente alagadas lá embaixo, o meu pescoço já deve estar melado, os cabelos... e como fazer para respirar?" A voz sobre a minha cabeça continuava falando. Eu adormecia e depois despertava, talvez sufocasse, sentia os cabelos sendo revirados e logo depois relaxarem naquela meleca que rangia e que cantava. "O que fazer numa situação como esta?", surpreendi-me pensando no instante seguinte. "Estou aqui, e aconteceu, aconteceu justo comigo, o mais limitado, o menos dotado..."
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"Não, não, não é isso!", interrompe de novo o Gato, exasperado. "Assim não se vai a lugar algum! Narrativamente, quero dizer, não sei se me entende..."
"Sim e não!"
"A essa altura, deve haver uma reviravolta!"
"Uma reviravolta? Lá dentro? Lá embaixo? Mas não tem nem espaço!"
"Justamente: uma reviravolta! Algo que reabra o jogo, o discurso... Já sei, por exemplo, o sujeito lá embaixo poderia dizer do nada: 'E porém, e porém... quem disse que um enterrado vivo deve obrigatoriamente arrancar os cabelos, desesperar-se, exibir-se? Trata-se, a esta altura, estando assim as coisas, de assumir o controle da situação não apenas no nível emotivo, sentimental, fisiológico, biológico, mas também teoricamente, em um certo sentido, quero dizer... É preciso também estabelecer um projeto!'."
"Um projeto?"
"Sim, é claro, um projeto! Voilà! Por que não? Entendeu agora o que é uma reviravolta?
Pausou por um instante, começou a agitar fortemente a cabeça e a suspirar.
"Não, não! Você tentou. Eu entendo. Mas ainda não chegamos lá!"
Levantei de repente os olhos, em direção ao Gato que gesticulava e se remexia.
"Não, não, não tem o que fazer, assim não está dando certo! E além do mais, é preciso de um pouco mais de vida! Você tem que colocar umas gostosas no meio!"
"Como?! Nesse contexto?"
"Mas é claro, não há problema! Já disse e repito, hoje existe o sexo prêt-à-porter, viagens, celularzinhos, shoppings, aviões, espuma de banho, bebidas energéticas, controle remoto... Se ninguém trepar o leitor se aborrece!"
"Mas como é possível, numa situação dessas?"
"Não importa! Para que serve, então, um escritor?"
"Mas como é possível, tecnicamente?"
"Não difícil achar um jeito! É que ainda se tem uma ideia muito retrógrada do mundo subterrâneo, se você quer mesmo saber. Ainda estamos na física clássica, ainda estamos nos campos, nos planos. Ainda não ocorreu um entrecruzamento com as novas projeções, os novos saberes. Mesmo lá embaixo não é mais como era antes, tá achando o quê? Ondas, movimentos de ondas, sondagens, probabilidades. Lá também, tudo atravessa tudo, comunicação total. Tá achando o quê? Nem todos são como você, não! As pessoas se atravessam, se encontram! Pensa um pouco em quando chove, por exemplo, e o solo fica encharcado e as covas deslizam umas sobre as outras, uma dentro da outra, quem sabe o quanto eles todos não se divertem lá embaixo! Lá também deve haver sinais, consentimentos, performances! Você deve ser capaz de imaginar as técnicas de sedução, as abordagens, as poses possíveis, os odores corporais... Você sabia que os pelos continuam crescendo mesmo depois que alguém já morreu, por muito tempo? Quem sabe quantas vulvas não florescem sobre aqueles ossos púbicos! Aderência total, sem mais mucosas deslizantes, sem mais problemas de ereção com a idade. Quem sabe como eles metem dentro com aquele osso nodoso que existe no interior do membro, dentro daqueles esfíncteres de osso, daquelas rosas de osso! E daí, se, pelo contrário, um for parar na cova do outro, sexo sem mais lábios, sem mais problemas de línguas machucadas, de pedaços de carne violados, apenas um pouco de medula escorrendo, pela primeira vez, necessariamente, presumo, no orgasmo..."
Ele tinha jogado repentinamente ambos os braços para trás, e me encarava.
"E além disso, você tem que levar em conta que a atividade sexual faz bem também para a constipação, para a artrose. Não lê os conselhos dos médicos nos jornais? Eles a recomendam, justamente por isso, depois de uma certa idade. Logo, melhor ainda, depois de..."
Parou subitamente, com o braços abertos esticados.
"Chega, chega! Entendi!", ele disse de repente. "Você está com um bloqueio! Está em crise!"
"Acha mesmo?"
"Mas é claro! Não é possível que você não esteja em crise."
"Mas para mim, não parece..."
"E como você sabe? Já pensou nisso?"
"Não, não me ocorreu, sinceramente, nunca pensei nisso."
"Viu? Mas não é possível que você não esteja em crise. Todos estão em crise! Os escritores só podem estar em crise, numa época dessas! Não lê os seus livros, os jornais?"
"Mas... mesmo assim, não acho que eu esteja em crise."
"Bem, dá no mesmo. Está em crise do mesmo jeito, mais ainda por não saber que está. Ainda bem que você me encontrou!"
Me olhava com os olhos arregalados. A sua boca também continuava aberta, meio deformada.
"Venha comigo!", animou-se de repente.
Já tinha me agarrado num dos braços com ambas as mãos.
"Mas aonde vamos?"
"Vou lhe levar até a Musa!"
A rua estava deserta. O Gato se jogava para frente com tanta força que quase tropeçava. Ouvia-se o barulho da sua botina mancando pela calçada.
"Vou confiar você a ela. Ela já fez milagres com outros. De vez em quando mando a ela algum escritor, quando percebo que está girando em falso, que está com um bloqueio. 'Vê se consegue extrair algo disso!', digo a ela. Pouco depois, vejo-os voltando todos rosados e penteados. Mais tarde, me entregam o belo deverzinho de casa pronto."
"Mas tem certeza que é uma musa?"
"Como não?"
"E onde fica? O que ela faz?"
"Bah... ela recebe visitas na casa dela, evita encontros em outros lugares. Passeia a pé, de táxi, por qualquer lugar onde ela possa lhe dar uma mãozinha, lhe inspirar. Nunca viu ela pela rua? Jeans rasgado, um brinco estrelado em cada lóbulo, a auréola do mamilo escuro contra a camiseta transparente colada, isto é, quando ela está vestida..."
"Mas é uma musa do quê?"
"Oh... ela cuida de informações inguinais, rítmicas, contorções. Também tem um olho para o discursivo, o visual. TV personalizada, vídeo-cassete. Técnicas do texto, punhetas, boquetes, bricolagem, transversalidade... Até nisso tem acúmulo de funções!"
Agora o Gato mancava uns passos mais à frente. De tanto em tanto acenava para eu me apressar.
"E ela se chama assim mesmo?", perguntei.
"Sim, sim, é o seu nome artístico!"
A luz vinha de cima. Eu via, por detrás, a forma da sua cabeça desenfreada, e distinguia no seu cume aquela cicatriz profunda, aquela navalhada.
"Ainda tem essa cicatriz?", perguntei-lhe a meia-voz.
"É claro! Queria que ela tivesse fugido para onde?"
Subitamente parou, para me esperar e me pegar pelo braço de novo.
"Ah...", ouvi-o suspirar de repente. "Cá estamos nós, ainda, eu e você, ainda juntos, depois de tanto tempo, mais uma vez atravessando as ruas, desbravando!"
Ele caminhava com a cabeça virada, eu sentia a sua mão tremendo ao redor do meu braço enquanto mancava extasiado.
"Veja: tem um florista na esquina da rua!"
Largou de novo o meu braço e já tinha alcançado a mancha colorida do florista, estava já remexendo por entre os vasos e os arranjos presos por aquele destoante papel alumínio.
"O que você está fazendo?"
"Pegando uma flor para você. Vou colocar na sua lapela. Você não pode ir até ela sem nada. Ela deve entender, à primeira vista, quem é que eu estou lhe apresentando desta vez!"
"Mas não, por favor, não sou feito para essas coisas! E além do mais, sequer tenho uma lapela direito..."
"Tem sim! Está só meio amassada, na verdade, num primeiro momento eu tinha confundido ela com um bolso..."
Estava já colocando uma grande flor amarela, espalhafatosa.
"Mas que flor é essa? Parece que bateram nela com um martelo de carne!"
"É uma dália!"
Chegou bem perto de mim, trabalhava com ambas as mãos para ajeitar o caule dentro na lapela, a sua cabeça de repente ficou vermelha, não dava para entender se ele respirava e tremia ou se estava de deboche.
"Não estou afim de andar por aí com uma coisa dessas! Talvez seja melhor eu levá-la na mão, se tiver mesmo que ir até lá com isso."
"Está brincando? Na lapela! Na lapela! Que ela entenda imediatamente, sem sombra de dúvida, o tipo que você é, do que você é capaz! E o mesmo para todos os que encontrarmos pelas ruas... Que espalhem a notícia. Que todos entendam que finalmente você está aqui, que você chegou!"
Tínhamos ultrapassado um grande estacionamento, passando de frente pela rampa de onde subia um bafo empesteado. Depois, um outro cruzamento, mais amplo, caminhando lado a lado em silêncio, e qualquer um que cruzava conosco logo coçava a testa ou bocejava.
"O que está acontecendo?", sussurrou o Gato ao meu lado, pensativo.
Ouviam-se gritos descontrolados, vindos de um canteiro sobrelevado, entrecortado por duas grandes avenidas.
"É uma mulher que precisa de ajuda!", disse o Gato, olhando ao redor, alarmado.
Agora os gritos eram ainda mais incontidos, estávamos entrando em uma zona onde tudo ressoava e aterrorizava.
"Maldição, estão violentando ela naquele canteiro!"
"Não, não, é só uma mulher que está contando tranquilamente algo às amigas!"
"Você está brincando?"
"Não! Olha, é aquela lá no meio, com os cabelos curtos e a boca enorme... não a vê?"
O Gato parou para olhar. Sobre a calçada, os pedestres andavam com os olhos arregalados. Um motorista pôs a cabeça para fora da janela, chocado.
"Mas por que ela está gritando desse jeito?"
"Não sei. Talvez nem perceba que está gritando. Deve ser o seu tom de voz normal, talvez ela more com pessoas surdas e esteja acostumada a falar assim."
O Gato continuava a olhar para a mulher, sem respirar.
"É aquela ali? Tem certeza?"
"Sim, sim."
"Ela fala com uma voz tão alta que, ao olhá-la, parece que está em silêncio... Mas como você sabia?"
"Passo por aqui todos os dias."
"E o que ela conta?"
"Um pouco de tudo. O que acontece na sua casa, na rua, no planeta... Esses últimos dias, por exemplo, ela têm falado bastante de recém-nascidos."
"De recém-nascidos? Ah, é? E o que ela diz? Vamos ouvir!"
Os recém-nascidos
São jogados nos sacos de lixo, nos engradados de coleta de vidro, nas fossas, nas valas. São jogados nas privadas, revirados em baldes de ácido ou de alvejante. São arremessados nos lixões, são devorados por cães, por ratos... caem aos montes sobre suas carnes ainda úmidas, atiram-se todos juntos às suas barriguinhas abertas, saem correndo com o focinho todo lambuzado, os tratos intestinais ainda fumegantes entre os seus dentes compridos. Espancam a garrafadas as suas cabecinhas recém-saídas enquanto parem com as pernas abertas sobre a latrina, os arrancam de dentro com as unhas pintadas, com mordidas, recurvadas em cima da privada. Os arremessam pelas janelas, de carros em movimento, à noite, os ouvem ranger mesmo estando na cama dentro de casa, quando algum carro passa por cima deles, o daquele homem que dá voltas em plena noite pelas ruas desertas, e atropela tudo o que vê pela frente, passa por cima das calçadas, não deixa passar nada...
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"Maldição! Certo, certo, nada a dizer, matéria-prima não falta, há uma voz! Entendi o gênero. Assim está um pouco melhor. O que é que eu lhe disse? Viu? Mas cadê o desenvolvimento? Que possibilidade de desenvolvimento há numa voz como essa? Bah! Falaremos disso depois, veremos..."
A rua fazia uma curva. O Gato tinha apressado ainda mais o passo, andava com o cigarro apagado no meio dos lábios, eu o via vibrar continuamente enquanto ele falava, desfocando.
"Mas agora estamos quase chegando. Está preparado? Finalmente vai começar para valer! Deixe-se ser guiado, deixe-se ser inspirado. Não consigo sequer ponderar a fundo o que poderá surgir do contato entre vocês dois. Com os outros posso calcular antecipadamente, sei desde o início qual será o resultado, é routine! Você vai ver como os planos e os espaços vão começar a girar! Não tenha medo se tiver a impressão de que não há mais nada na sua frente, tudo deixado para trás, de ter percorrido caminhos diversos, explodidos. Aqui, chegamos!"
Atirou-se por uma portinha aberta, depois em frente até a gradezinha de uma portaria fechada há muito tempo, trancada, depois subiu por uma escada pequena, depois por um patamar que tinha uma claraboia iluminada no chão, tinha que passar com os pés pelas bordas do vidro, sem ver, sem respirar.
"A roupa íntima é nova?", sussurrou o Gato um instante antes de tocar uma campainha, emocionado. "Você se trocou antes de sair ou está vestindo a mesma cueca há meses? Vai ser difícil desgrudá-la quando for tirá-la para dormir, uma depilação total, vai arrancar fora de uma vez todo o seu teatrinho genital..."
Já estava tocando a campainha, sem tirar o dedo do botão, enquanto me encarava com os olhos arregalados, sorridente.
Um instante depois, a porta se abriu.
Esgueirou-se uma mulher completamente nua.
"Ah, é você!" disse ela ao ver o Gato. "Acabou de ir embora aquele escritor que você me mandou!"
"Ah, é? Qual?"
"Aquele do renascimento do sagrado."
"Ah, é! Aquele desqueixado."
Eu observava a mulher. O seu rosto reluzia, ainda na penumbra. Estava coberto de gotas de sêmen masculino denso e viscoso, respingado sobre os lábios e sobre os olhos, sobre os cílios.
Virou os olhos para mim.
"E quem é esse?"
Encarava em silêncio a dália amarela presa na lapela da minha jaqueta.
"É um escritor que quer pôr a roda para girar de novo!", disse o Gato. "Tratamento especial para ele. Não é como os outros que que eu lhe mando de vez em quando."
A Musa trocou olhares com o Gato. Estava subitamente corada, me encarava em silêncio, emocionada.
"Ah, é? Então entre! Fazia tanto tempo eu esperava por um assim. Já havia perdido as esperanças. Venha, venha!"
Ela tinha aberto um pouco mais a porta, e ao mesmo tempo esticado uma mão para acariciar a minha cabeça, enquanto o Gato estava se afastando depois de ter acenado brevemente com o chapéu, quase se curvando.
"Venha, venha! Oh, sim, finalmente! Parecia que eu estava letárgica, trabalhando adormecida há tantos anos, sabe-se lá há quantos anos."
A Musa
Dei uma breve olhada ao redor, no quarto. A Musa tinha pegado na minha mão, e eu via os seus pés desnudos com as unhas pintadas caminhando sobre o piso, ao lado dos meus sapatos.
"Vamos até o outro quarto, ou até a minha cozinha, onde nunca deixo ninguém entrar. Minha forja, melhor dizendo...", exclamou, apertando ainda mais a minha mão, e ao mesmo tempo erguendo-a para observá-la sob a luz enquanto estava entrelaçada com a sua. "Este é o quarto onde recebo as visitas, dê uma olhada: mesa de massagem, um lavabo... Mera carne, para friccionar e liberar os fluidos. Mas com você será totalmente diferente, você vai ver. Logo lhe reconheci, entendi imediatamente quem você era quando lhe vi na frente da minha porta com aquela dália amarela. Vou abrir o meu coração para você, vou lhe revelar os meus segredos, coisas que já não revelo a ninguém há muito tempo, há tempo demais, vou lhe ensinar a respirar muitos respiros como se fossem um respiro só, vou lhe dar sabedoria e coragem, vou lhe ensinar a sustentar as emoções mais longas e a seguir em frente quando os outros já estariam exauridos há muito tempo."
Já estávamos na mini cozinha. A Musa tinha soltado a minha mão. Estava de frente para mim, imóvel e um pouco afastada, me contemplava com o rosto ainda reluzindo de sêmen e sorria.
"Acomode-se naquela cadeira dobrável, fique tranquilo, respire, você está na sua casa, finalmente!"
Tinha se virado para a pia, aberto a torneira e mergulhado o rosto de viés para se lavar. Eu ouvia os vários brincos tilintar enquanto ela esfregava uma e outra vez a água pelo rosto e pelas orelhas, com ambas as mãos.
"Você não faz ideia de como eu me sinto neste momento", disse enquanto se secava esfregando um pano de prato no rosto, "de como o meu coração está batendo... É uma coisa à qual eu mesma não estava mais acostumada. Até agora, apenas uma série daqueles escritorezinhos de aluguel, sem risco, sem temor, tanto por hora e tchau, aquele editor os manda para mim quando estão bloqueados com algum livro, ou então têm de reescrever num gênero que voltou à moda, ou se estão acomodados demais, como aquele lá do retorno dos sentimentos e da autenticidade. Tem que levar eles até em casa como que por engano, dar voltas ao redor deles fingindo que não é nada, inventar uma desculpa ou outra para mostrar a calcinha, pegar pela mão simulando entusiasmo, depois colocar na boca..."
Tinha se virado para mim, estava sentada ainda completamente nua na cadeira em frente da minha enquanto desenroscava a tampinha de um frasco de esmalte que estava na mesa ao lado.
"Você não faz ideia do quanto isso dá trabalho! Até dois ou três livros por ano cada um, e não obstante estão sempre em crise. Telefonam para o editor. O editor telefona para mim. 'Tenho um escritor com bloqueio! Quais os seus planos? Vai trabalhar! Há prensas paradas, o pessoal da revisão está aqui se coçando, os anúncios já estão em cima da minha escrivaninha, as resenhas futuras já estão prontas faz tempo, já foram até revisadas, e também as resenhas do livro que ele vai escrever depois desse, aquele que marcará o retorno da inautenticidade...' Corro de um lado para o outro, eles tiram de fora das cuecas aqueles membros frouxos, parecem uma massa mau fermentada que deu errado... Ah, desculpas por estar retocando o esmalte das unhas, tenho um encontro daqui a pouco!"
Ela tinha dobrado completamente as pernas, de frente para mim, colocando os dois calcanhares na borda da cadeira, muito afastados um do outro, e tinha começado a pincelar as unhas dos pés devagarinho, uma a uma.
"Ás vezes eles chegam aqui até com o manuscrito. Coloco eles na mesa de massagem, começo a apertar e a esfregar as costas, os glúteos, no meio das coxas. 'Oh, sim, sim, assim está ótimo!', ouço-os logo suspirar, com a cabeça virada de lado na mesa. 'Agora estou realmente começando a entender como tenho que desenvolver aquele ponto: tom sincopado, menor, discreto, reconhecibilidade total...' Faço-os virar para o outro lado. Olham quase com lágrimas nos olhos, de baixo, as minhas tetas balançando na cara deles. Se molham antes mesmo que eu tenha encostado de novo as mãos em seus corpos. Tenho que ficar trocando toda hora o lençol de baixo, a lona. Saem daqui mais leves, relaxados, pouco depois ligam para mim, assim que chegam em casa. 'Minha Musa, como estou contente! Agora tudo está bem. Voltei a trabalhar de bom grado. Já escrevi três capítulos de uma vez, já comecei dois livros novos, quatro entrevistas televisivas, o livro que vai sair dessas entrevistas..." Ganham uma chupada, querem meter o nariz em mim, enfiam a cara lá dentro, respiram a plenos pulmões lá dentro. 'Ah, sim, agora finalmente vejo tudo mais claro, tudo está claro!', ficam tagarelando com a boca lá dentro. 'Hipóstase bem-ajeitada, compromisso cívico, sentimento do tempo...' Ah, desculpa, o celular!"
Encostou ele contra a bochecha, respondia cochichando, continuando a me olhar enquanto sorria.
"Certo, mas não daqui a duas horas, um pouco mais tarde, daqui a três, daqui a duas horas já tenho outro compromisso. Sim, sim, me lembro, tenho que ir com aquela borracha escolar, você é aquele das novas ocupações frem, das redenções... Aqui, está vendo? Não pára! Dentro e fora. Ás vezes não tenho sequer tempo para acompanhar todos pessoalmente. Mando duas das minhas ajudantes muito especializadas, segundo o tipo de intervenção necessária. Eu não sou uma dessas musas baratas, dessas punheteiras. Essas não precisam de muito, quatro batidinhas e pronto, já abrem as pernas, toda aquela espuma de carne para fora, uma boa cartela de preservativos sempre em mãos, numa caixinha, preservativos anatômicos, texturizados, autografados, personalizados, blindados, para o dedo, para quem gosta desse tipo de coisa, para a língua, para quem gosta de lamber, para línguas em conchinha, flechadas, pontudas, bifurcadas..."
Tinha terminado de pintar as unhas, olhava para elas enquanto chacoalhava os dedos no ar, ainda com os calcanhares na borda na cadeira.
"Pronto, agora finalmente nos conhecemos!", voltou a dizer, parando de vez em quando para assoprar as unhas. "Finalmente entramos em contato. Estou emocionada como nunca estive. Agora eu também terei que me reinventar por completo, com você, dar um basta em tantos anos de trabalho feito sem pensar, cabeça vazia, os olhos fechados. Reinventar completamente o meu papel, a minha função, terei que fazer com você algo completamente diferente, que nunca fiz antes e que também terei que inventar para mim mesma dia após dia, buscar novos horizontes, novos caminhos. Eu mesma irei lhe chamar, lhe buscar, se ficar algum tempo sem lhe ver, se você sentir vontade de se esconder por tempo demais por outros caminhos. Eu mesma poderei me abrir para outros projetos, para outros sonhos. Estaremos juntos, eu e você, essa casa de agora em diante será sua, sempre que quiser, assim que quiser, do jeito que você quiser... Pronto, agora você sabe tudo sobre mim, esse é o meu trabalho, a minha vida, essa é a minha forja. O encontro aconteceu, finalmente você chegou ao seu destino, você e a sua flor."
Tinha se aproximado com o rosto muito perto de mim, eu via apenas os dedos da sua mão com as unhas pintadas que iam docemente desprendendo a dália da lapela, antes de colocá-la num vaso com um pouco de água, ali perto.
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O Gato coçava a cabeça e cantarolava.
"Oh, não, se é assim, não tenho nada a dizer... Vê que eu não estava enganado em lhe mandar para a Musa! Começa-se a entrever alguma coisa, alguma coisinha, potencialmente, com um pouco de vontade, pode-se dizer... De toda forma, estou atento, estou a postos. Mas seria necessário começar a mostrar um pouco mais dos personagens, dar a entrever um pouco mais do plot, senão o leitor se cansa, lembra que se esqueceu de passar o fio dental antes de ir para a cama, larga o livro na mesa de cabeceira, levanta-se com os pés descalços, vai até a privada, começa a desenrolar o fio enquanto tira meio metro de língua para fora da boca na frente do espelho, toda esbranquiçada, que nem porcelana, olha um pouco para ela meio preocupado, liga a TV a cabo, coloca uma fita no vídeo-cassete, se joga em cima do sofá, pega na geladeira um iogurte dietético sabor espinafre, coloca os flocos de bacalhau liofilizado que vêm junto no pote, e enquanto isso congela com o botão de pause aquele plano onde o cara pega a teta com as mãos e ela pega no pinto... Que história é essa de borracha escolar, por exemplo? O leitor não entendeu nada! E essas duas ajudantes muito especializadas? Eu teria desenvolvido um pouco mais essas duas personagens... Mas, enfim, você já sabe qual o plot?
"O plot?"
"Mas é claro, o plot! Não sabe nem o que é o plot? Maldição, o trabalho que eu vou ter pela frente! Mas desculpas pela minha interrupção. Vá em frente! O que a Musa estava dizendo?"
[…]