Carta de J.L.G. a H.L.
Paris, 9 de abril
Caros amigos do Oriente; como eu gostaria de estar com vocês esta noite para falar de cinema. Porque, se o cinema está morrendo, assassinado por isso que Roberto Rossellini chamou de cultura industrial, nós, do Ocidente, nós não estamos mortos, e vocês também não, espero! Sim, o cinema está morrendo, em Hollywood, em Roma, em Londres e alhures, onde já o enterramos com belos e tristes discursos. Mas vocês sabem tanto quanto eu que ele ainda não está completamente morto, que ainda respira levemente. Onde? No nosso coração que ainda bate por ele a vinte e quatro imagens por segundo. Essa modesta chama que ontem ainda incendiava o mundo com investidas das stars e e de milhões, agora cabe somente a nós que ela não se extinga definitivamente. Mas nem eu nem vocês o permitiremos, porque essa chama não é outra coisa que nossa própria vida. Nós representamos o cinema falado (e a nossa ambição deve ser inversamente proporcional à nossa modéstia), como Griffith e Eisenstein outrora representaram o cinema mudo. E eu não escolho dizer isso por acaso: cinema falado, ao invés de cinema. Porque cinema falado quer dizer: cinema que fala, e cinema do qual deve-se falar. Nesses momentos de problemas e de ilusões que atravessamos, é tão importante fazer filmes quanto falar deles. Eis porque eu gostaria de estar convosco esta noite, apoiando o valente Henri Langlois no seu combate, enfim: falar de cinema.
Frequentemente, jovens vêm me ver. Eles querem saber como fazer para se tornar um realizador, qual caminho seguir para entrar "no meio". Pois bem! Justamente, no cinema, não há meio, há somente extremos; não há regras, há somente exceções. A esses jovens que me imploram para empregá-los como assistentes para que aprendam, eu digo: não há nada a aprender, ou talvez haja, mas não como vocês acham. Um assistente é um escravo. Portanto, não tornem-se escravos. Se vocês querem um dia fazer filmes, então façam-os logo, não importa como, sobre qualquer coisa, porque tudo o que está entre a terra e o céu faz parte do reino dos homens, e portanto DEVE ser filmado! Se lhes propõem filmar um documentário sobre formigas, sobre panelas, sobre locomotivas, não recusem dizendo que vocês querem é filmar A ILÍADA ou AS ILUSÕES PERDIDAS ou sei lá qual outro grande tema. Pelo contrário, aceitem, e filmem as formigas, as panelas, as locomotivas, com todo o seu coração, com toda a sua inteligência, toda a sua ambição. Pensem que vocês estão fazendo o filme mais importante da história do cinema. A sua técnica seguramente é inferior à de um Rembrandt ou de um Shakespeare, mas a sua paixão deve ser igual. Quanto a isso, sempre carreguei no peito essa frase de Ernst Lubitsch: "Comecem filmando montanhas, e então saberão filmar homens". Eu gostaria poder falar de tudo isso com vocês, esta noite, para agradecer o seu convite. O que me consola, de todo modo, é saber que há sempre um ruído no mundo, em não importa qual momento, que quando pára em Tókio recomeça em Nova York, em Moscou, em Paris, em Caracas; há sempre, eu estava dizendo, um ruidozinho, monótono mas intransigente na sua monotonia, e esse ruído é o de um projetor projetando um filme. Nosso dever é que esse ruído não pare nunca. JLG.




– In Jean-Luc Godard, Documents, Éditions du Centre Pompidou, Paris, 2006, pp. 248-251.