Diário de trabalho do "Pascal" de Rossellini
Por Andrea Ferendeles, assistente de direção.
Segunda-feira, 16 de agosto
Magliano Sabina – Casa de campo abandonada.
Primeiro dia de trabalho.
Não filmamos. Os cenários não estavam totalmente prontos. Roberto Rossellini falava com o operador, Fioretti, sobre a sua série de telefilmes, "La scienza". Está procurando uma solução para conseguir fazer tomadas com uma ampliação muito grande, sem ser forçado a usar o microscópio para as tomadas moleculares.
Sente necessidade da sequência inteira sem cortes, que possa mostrar claramente o fenômeno molecular geral, para depois aproximar-se através de um travelling ou zoom até tornar visíveis as transformações particulares, sem recorrer a um corte que seguramente tornaria difícil a compreensão do fenômeno, tratando-se de uma realidade microscópica estranha aos olhos do espectador.
Uma coisa é ver o fenômeno geral e depois pouco a pouco aproximar-se cada vez mais até ver o que acontece no interior daquela partícula examinada; uma outra coisa é, em vez disso, ver corpos e cores sobre a tela e depois, com um corte, ver outras cores e corpos, sem precisar as relações que existem entre as duas imagens.
Com certeza é difícil transpor essa questão do nível da realidade microscópica ao nível da realidade cotidiana na qual o homem move-se e vive. Porém, ainda que de forma muito menos evidente, isso seguramente representa um dos valores semânticos do zoom e do traveling.
Terça-feira, 17
Vi o sistema de zoom projetado e encomendado por RR. O diretor de fotografia Mario Fioretti me explicou as suas características e possibilidades. É uma versão especial do Pancinor, uma zoom 25-250mm modificada com dois motores interlock que possuem um efeito de freio e que amortizam as oscilações; ademais, há um controle remoto composto por um manche de comando instalado em um tripé e ligado à câmera por um cabo removível.
Tal sistema oferece duas vantagens importantes: permite um movimento uniforme da objetiva e dá a RR a possibilidade de ele mesmo operar o zoom, mesmo com a câmera sobre trilhos.
A inconveniência de não poder olhar pela câmera enquanto o zoom é em ação é perfeitamente compensada pela sensibilidade e experiência de seu olho e pelo seu afinamento com o diretor de fotografia.
Durante os ensaios, o cabo do controle remoto é removido e RR, olhando a cena pelo visor da câmera, determina os movimentos tanto dos atores quanto da câmera e as correspondentes variações de distância focal da objetiva, as aproximações, os afastamentos, e os detalhes que deverão ser obtidos com cortes.
Tudo isso nos leva a crer que as inovações técnicas são não apenas possíveis, mas tornam-se inclusive necessárias quando os resultados são capazes de transformar os modos da comunicação visual.
Quarta-feira, 18
(Falou-se de uma suposta desatenção de RR nas filmagens de seu último filme; creio que isso exprima um olhar superficial.)
A facilidade com que ele filma é fruto de uma enorme clareza, de um método de trabalho muito estudado e já muito experimentado na prática. Atenção ou desatenção não têm nada a ver; encontro-me perante um método no qual os materiais fílmicos ou profílmicos assumem uma posição e uma interrelação uns com os outros de modo a obter, como resultado, um conhecimento.
Tal procedimento parece claro se notamos a importância que RR dá aos detalhes dos comportamentos típicos da época histórica retratada; ele me parece sobretudo interessado no quão diversos esses comportamentos são dos nossos, e portanto da necessidade de alterá-los.
Tais comportamentos representam, quase que por dissimulação, a estrutura socioeconômica da época.
Tanto que me parece possível dizer, citando Brecht, que isso significa romper com o hábito corriqueiro de despir de sua diversidade as várias estruturas sociais de épocas passadas, tornando-as assim todas mais ou menos parecidas com a nossa, que, graças a essa operação, parece existir desde sempre e ser, portanto, eterna. Rossellini claramente quer manter essa diversidade, sem perder de vista o seu caráter transitório, de modo que igualmente transitória possa parecer a nossa própria época.
Podemos encontrar um outro exemplo no uso de atores que são deixados extremamente livres, tanto que eles mesmos se sentem frustrados por esse excesso de liberdade.
RR parece ser completamente desinteressado pela chamada "recitação". Ele intervém somente na ação, nos movimentos dos atores, com extrema obstinação.
Talvez seja significativa uma coisa que Pierre Arditi, que interpreta Pascal, me disse: ele afirma que Rossellini o faz se mover com tanta naturalidade que o resto lhe vem automaticamente...
Seguindo o personagem nas suas ações, descobrimos o ambiente que, por meio dos movimentos da câmera, revela as suas diversas facetas, transformando-se sob nossos olhos, isto é, assumindo todas as posições intermédias entre um ponto inicial e um ponto final; disso resulta uma montagem interior ao plano, um movimento contínuo (de luzes, de cores, de perspectivas) através do qual os objetos e os personagens são cercados e examinados pelo "olho".
Quinta-feira 19
Um pequeno incidente, felizmente sem consequências: na cena da chegada da família Pascal na sua casa em Rouen, um dos cavalos que puxava a carroça bateu de cara com a câmera. Estranho, os cavalos são famosos pela sua habilidade em evitar obstáculos.
A câmera movia-se ao redor do poço em sentido exatamente contrário à trajetória da carroça; bastou um pequeno atraso na partida do travelling para que o olho do animal viesse de encontro ao "olho mecânico".
Isso demonstra a precisão milimétrica de todos os movimentos e de suas combinações.
Último dia em Magliano.
Sexta-feira, 20
Nos deslocamos a Bassano, no castelo de Odescalchi.
"O plano-sequência é mais direto... dá uma maior sensação de intimidade...", limitou-se a responder RR a um jornalista que tentava teorizar acerca de suas longas sequências; depois, perguntou aos maquinistas se desse modo eles trabalham menos.
As suas palavras, assim como o seu cinema, possuem o efeito de redimensionar as coisas, de desmitificar tudo.
Na verdade, "plano-sequência" não quer dizer nada; o problema não é o número de cortes na montagem. Há uma montagem interna ao plano, declarara muito bem o próprio S. M. Eisenstein: "o conflito no interior do plano é a montagem em potencial... que, intensificando-se, arrebenta a própria jaula intelectual e projeta o seu conflito entre as partes da montagem."
O "plano-sequência" por si só, portanto, em nada nos interessa, e pode-se falar dele apenas como algo mais eficiente – o que, por outro lado, torna-se muito importante se pensarmos que os altos custos de produção ainda são um dos maiores obstáculos para um cinema novo, composto de muitos filmes endereçados a ouvintes específicos.
Sábado, 21
Cena 36/I.
Trata-se da cena em que Blaise, já muito doente, recebe a visita do duque de Roannez no seu quarto em Paris. Diferentemente do usual, essa cena foi repetida várias vezes. Todos os elementos devem se desenvolver simultaneamente com uma precisão absoluta.
Pascal, já velho e doente, está afundado na cama no meio do quarto: ele é o cerne da cena. Todo o resto gira ao redor dele.
A câmera, parada de um lado da cama, enquadra Pascal que, após terminar de escrever, tenta se adormentar. Pela porta, ao fundo, entra o duque.
Tanto a câmera quanto o duque movem-se em um semicírculo de 180º ao redor de Blaise, mas em sentido inverso; eles se aproximam até parar quando estão quase num mesmo eixo em relação a Pascal. Depois, se afastam, um atingindo a posição inicial do outro. Nesse ínterim, o zoom avançou de 25 a 250mm (ou seja, atravessou toda a gama de distâncias focais possíveis) ao longo da primeira metade do semicírculo, para então deter-se completamente, depois da pausa, na segunda metade. A geometria é perfeita.
Porém, vista pelo visor, a cena dá uma impressão completamente diferente, a geometria desaparece: vemos o duque aparecer no espaço entre as colunas da cama com dossel, enquanto a câmera gira ao redor de Pascal, mantendo ele em campo, para depois deixá-lo sair e retomá-lo mais uma vez. Ao fim da cena, a equipe inteira bateu palmas.
Segunda-feira 23
Enquanto que, junto a outros técnicos, RR é muito atento às inovações, no que cabe à iluminação ele parece mais ligado à tradição: usamos lâmpadas PAR 64 sobrecarregadas, que emitem um estreito feixe de luz e permitem a obtenção de efeitos particulares. Hoje, porém, essas lâmpadas já caíram em desuso; adota-se as de quartzo, ou "2000" integradas, às vezes com as lâmpadas sobrecarregadas.
Terça-feira, 24
Não trabalhamos com um roteiro propriamente dito; há cerca de 350 páginas de materiais elaborados por RR com a colaboração de M. Mariani e L. Scaffa.
Com base nestes materiais, dia após dia, dá-se uma configuração precisa à cena a ser filmada.
RR, antes de cada cena, dá uma olhadela nos diálogos escritos na noite anterior, frequentemente modificando-os; depois, imediatamente constrói a cena, definindo a posição da câmera e seus eventuais movimentos. Sem nunca afastar-se do set, aguarda até os maquinistas e eletricistas terminarem o seu trabalho; nunca o ouvi apressá-los. Até porquê, não haveriam motivos: a equipe é realmente perfeita. É gente que conhece o seu trabalho e o executa evitando todas as complicações de modo autônomo e coordenado, tanto que frequentemente nem nos damos conta da quantidade de problemas que surgiram durante o dia. Quando a luz é pronta e o diretor de fotografia dá o seu "ready", RR ensaia a cena com os atores, mas sem nunca mostrar ele mesmo as ações, talvez porque assim os atores não possam repeti-las, imitando-o.
Depois de alguns ensaios a cena é filmada inteira, sem cortes; raramente os detalhes são filmados mais de uma vez; e creio que até agora não filmamos nenhum "contracampo".
Cada cena é repetida no máximo duas ou três vezes, mas frequentemente filma-se uma única vez, "boa!" e basta!
Quarta-feira, 25
É quase uma constante. O zoom percorre um movimento de vaievém, seleciona uma parte da realidade profílmica e aproxima-se dela para então afastar-se novamente, atravessando toda uma série de distâncias focais diferentes.
Sexta-feira, 27
Segundo RR, "a câmera tem uma sua lógica precisa. O importante é ter o intuito de colocá-la no ponto exato, levando em conta que tudo remeterá a ela. Uma vez encontrado o ponto preciso, que é o mais lógico entre todos os possíveis, tudo acontece automaticamente, e cada coisa obtém um ritmo e uma fluidez tamanhas que não é mais necessário ditar acrobacias e contorcionismos aos atores para que se encaixem na ordem prevista pela encenação".
Sábado, 28
Rodamos, entre outras, a cena da teoria da aposta. Pascal, na sala de recepção do duque de Roannez durante um jogo de dados, responde às perguntas religiosas de um dos jogadores expondo a sua famosa e moderníssima teoria da aposta. Pascal: "A razão não pode determinar nada, mas somente constatar que há uma infinidade de coisas que a ultrapassam. Você não é cético, já que o cético sabe que existe no homem uma necessidade de certeza, e você não se contenta com explicações aproximativas. Nem é dogmático, já que todos sabemos que a vida é incerteza e mudança contínua. Então, o que lhe resta? Deus existe ou não existe? Que resposta escolher? Como em um jogo, levado às últimas consequências, você deve escolher! Não pode fazer outra coisa! Está comprometido! Ora, nem pela razão, nem pelo coração é satisfatório apostar no fim de tudo".
O jogador, ainda cético, pergunta: E se eu perder? – naquele instante, chega a sua vez de jogar, a bela dama joga os dados, vence e, com um sorriso, pega dele o que ele tinha apostado na mesa. Tudo isso aconteceu quase que por acaso.
Chegou a vez do jogador, depois de uma rodada completa, bem na hora em que ele dizia a sua fala: E se eu perder?
O único momento em que entreviu-se uma certa intencionalidade foi quando RR sugeriu à dama que sorrisse enquanto pegava a moeda.
Mas, mesmo tentando me recordar o máximo possível, tenho certeza de que durante a encenação ele não havia predeterminado nem que os dados deveriam ser passados ao jogador no exato instante em que este fazia a sua pergunta a Pascal, nem que o jogo deveria terminar com a sua derrota. Talvez, ele tenha deixado a resposta a cargo do jogo das probabilidades.
Revendo essa cena projetada, nada disso é explícito, mas permanece oculto, no fundo.
Segunda-feira, 30
RR perguntou ao diretor de fotografia se na cena que acabara de filmar sentia-se a técnica.
Ele não gosta que os meios técnicos seja "sentidos"; na verdade, em seus filmes a técnica não se sente: se lê.
No momento em que percebemos a imagem cinematográfica de uma determinada "coisa", o objeto da nossa percepção no momento é aquela "coisa". Podemos descrever o objeto que aparece a nós, mas não a imagem em si, quer dizer, as características "próprias" da imagem; para fazer isso, devemos recorrer a um ato em segundo grau:
a reflexão, através da qual uma parte da atenção desloca-se do objeto, para concentrar-se no modo como esse objeto nos é apresentado ou transmitido. O cinema de RR estimula isso que chamamos de momento de reflexão, talvez justamente porque nele a técnica não se sente, mas se lê.
Sentados juntos em um banco na pausa depois do almoço, RR me falou de Pascal como se fosse um chato de galochas sempre meio doente. Mencionei a cena da aposta girada anteontem e aquela porção de casualidade que ressaltei. Me respondeu com um sorriso, do qual depreendi que, em um método muito provado, até a casualidade tem o seu lugar preciso, quase previsível.
1 de Setembro, quarta-feira
Filmamos a cena da disputa entre Descartes e Pascal.
Para o papel de Descartes, até segunda-feira não sabíamos ainda quem o interpretaria.
Nenhum dos atores sugeridos parecia ser bom, e então na última hora Roberto pensou num amigo seu e o trouxe da França; ainda que mal tivesse ganho o papel antes de entrar em cena, revelou-se um Descartes perfeito, com uma extraordinária semelhança física.
Assim como na sua fase neorrealista, RR voltou a utilizar atores pouco conhecidos ou até pessoas e amigos não-atores em seus filmes, talvez por ainda não terem sido banalizados e esquematizados aos olhos do público. Usando um ator muito conhecido, há o o risco de que este, com a sua personalidade já afirmada, "jogue" com o personagem histórico; desse modo, pode-se desencadear um processo em que, aos olhos do espectador, o personagem histórico torna-se aquele ator.
Quinta-feira, 2
Mudança de locação para a abadia de Fossanova.
Na cena do parlatório de Port Royal, uma das colunas interpunha-se, fora de foco, entre os atores e a câmera; para evitar isso, os trilhos do travelling foram reposicionados, de tal modo que a câmera passasse à frente da coluna; esse deslocamento comportou uma mudança na encenação e no movimento dos atores. Reencontramos aqui uma constante:
o panfocus, quer dizer, o campo inteiro em foco.
Tudo é visível e perfeitamente reconhecível. Não é no nível "fotográfico" que se dá o salto metafórico.
Sexta-feira, 3
Cena do processo de bruxaria.
Única cena girada com cortes diversos e não em um único plano. Efetivamente, foi necessário um tempo maior. A interpretação de Anna Caprile suscitou aplausos de toda a equipe. Uma pena não podermos vê-la na projeção com o som direto.
Sábado, 4
Agora faltam apenas as externas que filmaríamos na França, mas parece que decidiu-se por ficar na Itália e fazer uso de espelhos e trucagens.
– ANDREA FERENDELES (assistente de direção)
Diario di lavorazione del "Pascal". In: Quaderni di Filmcritica #7 - R. R., Roberto Rossellini (a cura di Edoardo Bruno), pp. 177-187. Bulzoni, 1979.
Originalmente publicado em Filmcritica #218, outubro de 1971.
Traduzido do italiano por Gabriel Carvalho.