Rossellini, CONVERSA SOBRE CULTURA E CINEMA
"Quero me retirar da profissão", afirmou em 1963.
Durante a apresentação do Indice Generale da Filmcritica na livraria Einaudi em Roma, ocorreu uma interessante discussão sobre o cinema e a cultura contemporânea. Publicamos integralmente, tal como foi gravado, o comentário de Roberto Rossellini, abrindo assim o debate nas páginas da revista.
A crise de hoje não é apenas uma crise do cinema mas também uma crise da cultura. O cinema, que é o meio de difusão por excelência, teve o mérito de tornar essa crise palpável, de torná-la evidente. Por isso quero me retirar da profissão e considero que o que deve ser feito hoje é preparar-se – com toda a liberdade – para reexaminar cada coisa desde o princípio, para poder seguir caminho com bases totalmente diversas.
Na minha opinião, essa crise da cultura é generalizada, não diz respeito somente a nós; estende-se por todo o mundo. Por toda parte vemos massas de homens levados a tornarem-se fragmentos de tubo digestivo por essa imperante "sociedade do consumo"; a certa altura, o próprio cérebro acabará se atrofiando. O que deve ser feito, portanto, é retomar as coisas desde o ABC. Se realmente queremos ser capazes de compreender as razões profundas da crise que atravessamos, então é preciso recomeçar as discussões a partir das coisas mais elementares. Quando a guerra acabou, nos encontramos como que num deserto, tudo tinha sido arrasado. Como é possível que o cinema neorrealista tenha conseguido ser imediatamente tão vivo e tão importante? Justamente porque tivemos a coragem de olhar as coisas com olhos inocentes, tais como eram. Porque recomeçamos do zero sem nos preocupar em filosofar demais sobre o que tínhamos passado, sem tentar fazer poesia em cima de toda a dor que tínhamos sofrido. Isso aconteceu porque havia dentro de nós uma grande carga de sinceridade e porque, recomeçando do zero, observava-se e descrevia-se, sem falsos intelectualismos, o horizonte que nos rodeava.
Hoje, porque parece-me que, no que cabe à cultura, encontramo-nos naquele grau zero, encontramo-nos em meio a destroços, acredito que é necessário recomeçar a recuperar tijolo por tijolo, reordená-los, catalogá-los: esses são os tijolos, isso são antigos degraus despedaçados; ordenemo-los, façamos o inventário e depois vejamos, desses tijolos, desses velhos degraus, o poderemos, ou não, construir. A realidade que desenvolveu-se a nosso redor nos escapa, justamente porque o nosso preparo, seja ele instrumental ou cultural, é mínimo. Parece-me que o mundo está se expandindo a uma velocidade assustadora, novas arquiteturas estão surgindo, novas formas e estruturas, as quais não somos mais capazes de controlar, justamente porque faltam-nos os próprios instrumentos de observação e investigação. Esse é o ponto mais grave da nossa crise. A falta de instrumentos adequados força-nos a limitar a nossa atenção a pequenas, minúsculas novidades parciais que seguimos mastigando, remoendo, cuspindo e colocando de novo no prato à nossa frente sem nunca chegar a ver as grandes cadeias montanhosas que, neste ínterim, ergueram-se sob nossos olhos. Surge o Himalaia, e estamos ainda olhando para o pó no fundo do vale!
De fato o cinema, nessa crise particular, poderia assumir um papel importante para encaminhar uma sua solução positiva; poderia tentar tornar-se até mesmo um meio insubstituível, digamos, didático, mesmo no sentido brechtiano. Deixemos de lado por um momento os aspectos demagógicos e políticos da questão, e tenhamos em mente, por um momento, essa consideração: nenhum filme, hoje (isso também acontece na literatura; seria necessário voltar a Balzac e Zola para encontrar autores que refletem a construção de um mundo historicamente preciso), reflete essa nossa sociedade contemporânea. Nenhum filme, ou obra literária, etc., agita os problemas que concernem concretamente à nova humanidade, porque um novo sentido dramático não foi encontrado. Por isso digo que parece-me necessário reexaminar casa coisa desde as origens, fazer, em suma, como o professor de ensino fundamental que tenta contar, do jeito mais simples e linear, os grandes acontecimentos da natureza e da história. Existem, hoje, problemas que são de uma evidência absoluta, basta dar-se o trabalho de ir a qualquer ambiente para ver como até as coisas aparentemente mais simples, se aprofundadas, revelam-se complexas e importantes. O ambiente operário hoje parece-me, sob esse olhar, assaz representativo: há reivindicações salariais mas não há reivindicações quanto ao problema fundamental da nossa civilização, que é o da despersonalização de imensas massas de trabalhadores. Como é possível não ser interessado nisso, sem reagir? Isso, entre tantos outros, é um problema, são coisas asfixiantes. Por isso eu digo que é preciso começar as discussões desde o início, da primeira letra do alfabeto. Porque não basta averiguar as denúncias, é preciso reexaminar ponto a ponto as condição que levaram a esse estado de coisas. Para ser capaz de exprimir de modo concreto, por exemplo, qual a condição hoje de um operário em uma certa indústria, é necessário voltar atrás e examinar o que foi o fenômeno da revolução industrial, que construiu o mundo moderno. Isto é, é preciso reconstituir-se nas origens, reconstituir-se a partir de dados irrefutáveis e ter claro para si, por exemplo, o porquê da revolução industrial ter sido acompanhada de um aumento vertiginoso das populações (a Inglaterra, por exemplo, que tinha oito milhões de habitantes, alcançou trinta milhões no curso de uma só geração). Quais as causas, quais as razões desse dado estatístico preciso? Se não se começar a enfrentar as coisas desde as origens, nunca se será capaz de entender sequer a psicologia individual, e de maturar análises precisas. Para lograr isso, é necessário fazer uma verdadeira obra de difusão do conhecimento. O cinema, como todos os ditos meios de comunicação em massa, pode e deve ser também didático.
Já se perguntaram como é possível hoje realizar um filme com plena liberdade na Itália? Que produtor estará disposto a arriscar, digamos, 25 liras, sem a garantia de poder pelo menos recuperar os custos? Essa garantia, do seu ponto de vista, é legítima; mas do ponto de vista do autor ela é já uma limitação da liberdade, é já uma concessão. Isso quer dizer que são as próprias estruturas do cinema, como são entendidas hoje, que é preciso modificar. Fala-se em "Nouvelle Vague" e de um cinema que busca novas linguagens e novos conteúdos, sem preconceitos, e que remete à nossa experiência, ao neorrealismo. Mas como foi possível obter esses resultados na França? Primeiro, graças à estrutura do cinema francês, que ajudou esses jovens a exprimirem-se e, naturalmente, graças à presença desses jovens autores. Os "prêmios de qualidade" na França não são entregues apenas ao fim de um filme, mas também a um filme ainda em produção, até mesmo em desenvolvimento. O Centre du Cinéma dá uma soma que varia entre 10 e 20 milhões de francos a projetos que pareçam interessantes, que possuam certas características. Isso permitiu movimentar uma série de projetos, porque os autores não tinham necessidade de persuadir o produtor, bastava persuadir eles mesmos. O que pude sugerir a esses jovens que me eram próximos e com os quais era e sou ligado por uma afetuosa amizade? "Olhem ao redor" – disse-lhes – "e exprimam-se em plena liberdade. Abandonem toda veleidade de fazer um cinema formalmente impecável. O que importa é que consigam exprimir a si mesmos. Não é preciso fazer parte de tal ou tal movimento, o que importa é que cada um de vocês diga o que quer dizer, que exprima o que sente. Abandonem tudo aquilo que hoje a técnica tem de complicado, esqueçam as câmeras enormes, a tela grande, a cor, usem câmera na mão, até mesmo o 16mm". A história de Truffaut é muito simples; estreou na direção com aquele filme belíssimo, Les Mistons, que custou um milhão e meio de francos! Logo arrecadou, creio, oito milhões com os "prêmios de qualidade". Com esses oito milhões fez Les 400 coups, que ao todo não custou nem 30 milhões.
Haviam os autores, haviam as ideias, mas também haviam estruturas idôneas. Portanto, a reforma também deve nascer do terreno da lei.
Só assim poderão ser criadas novas estruturas, e só assim, apoiados por ideias claras e precisas, poderão ser enfrentados os problemas ligados a um modo de expressão mais concreto e sobretudo mais adequado à compreensão deste nosso mundo contemporâneo.
Leiam a Menabò #4, publicada pela Einaudi e editada por Vittorini. É levantada a questão de se, da indústria, que é um dos novos aspectos da vida moderna, é possível extrair inspiração para obras de arte. Parece-me chegar a conclusão de que essa realidade não pode servir como fonte de inspiração. Ouso discordar. Talvez isso queira dizer que ainda não foi-se capaz de descobrir a verdade-verdade, porque se essa tivesse sido compreendida, tenho certeza de que algo teria se movido.
Conversazione sulla cultura e sul cinema. In: Quaderni di Filmcritica #7 - Roberto Rossellini. A cura di Edoardo Bruno. Bulzoni Editore, 1979, Roma.
PDF: https://drive.google.com/file/d/1_asTrzCRIFbQqduiWFJ87zcSPwoZqA9D/view?usp=sharing
Originalmente publicado em Filmcritica #131, Março de 1963.
Traduzido do Italiano por Gabriel Carvalho.