(Centenaire du syndicalisme): Vidéo-clip pour une réflexion syndicale et pour le plaisir é um curta ensaístico de Chris Marker realizado quando do centenário da lei francesa de 1884 que permitiu a livre constituição de sindicatos, sem necessidade de autorização do governo. Neste filme encomendado pela Confédération Française Démocratique du Travail, porém, ao invés de meramente olhar para o passado e celebrá-lo, o cineasta projeta-se rumo ao futuro, indagando-se quanto a três rumos possíveis do movimento sindical nos 100 anos que se seguiriam. A obra, que poderia facilmente ter sido uma espécie de documentário factual retrospectivo, é transformada num ensaio especulativo no qual o pensamento do realizador é inscrito no filme não diretamente, mas através de um desvio – uma espécie de meta-ficção que trabalha entrevistas contemporâneas reais – e apresenta-se de forma múltipla, como 3 hipóteses distintas.
O filme inicia-se com uma voz feminina narrando no pretérito perfeito o dia de 2084 em que o "robô-apresentador da televisão intergalática" foi programado para apresentar o bicentenário da tal lei sindical, "nos seguintes termos" – ao que ouvimos uma série de "beeps" e sons eletrônicos sendo emitidos por uma estranha figura digital numa televisão. Os sons são incompreensíveis, deixando o futuro em aberto para que o ensaio possa, a seguir, discuti-lo.
Desta abertura futurística, corta-se para uma sala apertada com 3 pessoas trabalhando numa mesa de montagem. Em torno delas, dois televisores, um com a mesma figura digital que vimos antes, e outro apenas com os números "2084". A narração muda para uma voz masculina, que nos diz que as pessoas que vemos receberam a encomenda de um filme sobre os primeiros 100 anos do sindicalismo na França, do que supomos estarmos no ano de 1984.
Se de imediato surge uma confusão quanto à temporalidade da narração – estamos afinal em 2084 ou 1984? – o narrador, de nenhuma forma ingênuo quanto ao efeito desorientador provocado, trata então de esclarecer que, incapazes de dizer qual é a situação atual do movimento sindical, os cineastas-personagens resolveram-se por fazer um filme sobre qual seria a situação daqui a 100 anos; a cena inicial é então reinterpretada como sendo o resultado, ainda incompleto, desse trabalho especulativo. A missão deles é, efetivamente, a do próprio Marker com o filme, que figura assim o seu próprio trabalho e suas escolhas de forma ficcional nestes 3 personagens distintos, ou seja, fragmentando e corporificando o seu próprio ponto de vista pessoal, múltiplo. Não ouviremos mais a narração feminina, nem a "voz" do tal "robô-apresentador"; Marker introduziu o futuro apenas para deixá-lo indeterminado, e permaneceremos o resto do filme nesta sala de montagem ficcional de 1984.
A seguir, somos apresentados ao trabalho especulativo dos personagens-cineastas: realizaram uma série de entrevistas, e selecionaram das respostas dos participantes uma série de palavras-chave que foram separadas em três grupos, que vieram a dar origem às 3 hipóteses futurísticas que serão apresentadas uma a uma.
A primeira é constituída a partir de respostas à pergunta "do que você não gosta?" ("qu'est-ce que tu n'aime pas?"), que vemos escrita na tela escura de uma televisão que também figura o rosto refletido de uma das cineastas-personagens, evocando um possível reflexo do próprio espectador no filme, como se a pergunta fosse dirigida também a nós. Então, uma montagem das respostas com as palavras-chave, no que parecem ser entrevistas reais conduzidas por Marker com pessoas comuns: "a política", "os estereótipos", "coisas rígidas", "a monotonia dos sindicatos e das manifestações" são algumas das frases, em geral banais.
Esta seria a "hipótese cinza" (na tela, a palavra “grise” transforma-se em “crise”, primeiro de uma série de jogos com palavras), uma crise interminável que é mais ou menos amortecida por um estado de bem-estar social, e da qual não se escapa justamente por ela manter as pessoas no limite da exaustão e da preocupação em que imaginar novos futuros torna-se impossível. O movimento sindical existe, garante um certo conforto aos trabalhadores, mas não propõe uma outra sociedade. É a hipótese mais próxima da realidade presente e o futuro mais provável (por isso é logo a primeira a ser apresentada), mas que Marker, numa guinada que afasta o seu filme do documentário e o leva ao terreno mais flexível do ensaio, prefere descrever através desse desvio de uma associação livre de palavras, e num procedimento que permite a ele, ao contrário de um ensaio escrito, fazer uso de material documental bruto, de incorporar o pensamento dos outros em seu filme, extraindo desse conjunto de pensamentos individuais uma espécie de “inconsciente coletivo” a partir do qual a sua hipótese é formulada; um método que não tem nada de científico nem grande rigor filosófico.
Após a série de entrevistas, enquanto o narrador masculino disserta sobre a tal “hipótese cinza”, vemos, de forma muito estilizada, os personagens-cineastas ao trabalho, refletindo o processo de feitura do próprio filme: observando trechos no visor da moviola, cortando e colando pedaços de película, mixando o som, etc. e também as imagens que eles vêem e com as quais trabalham, registros documentais de eventos históricos, de forma direta ou projetados artificialmente em seus rostos – a presença de imagens de arquivo reforça que este futuro é na verdade o nosso presente; a partir do material que já possuem, os cineastas-personagens estão organizando a hipótese de que a narração nos informa. O narrador masculino, que antes parecia impessoal, torna-se mais humano, seu discurso mais livre; faz uma piada sobre um possível sindicato de escorpiões que existiria após um apocalipse nuclear, mas diz que "isso não importa para mim", chamando atenção para si mesmo como uma entidade com opiniões e não apenas uma voz; depois, dirige-se diretamente ao espectador, de forma irônica, fazendo dele um cidadão desse futuro particular: "deixe tudo a cargo dele [o sindicato], ele tomará por você as decisões que determinam o seu destino". É a voz que imaginaríamos ser a que mais se aproxima de Marker, mas que está envolvida justamente num jogo mais complexo, de forma que o filme possa ir além de uma reflexão particular de uma única pessoa, e que sua relação com o espectador não seja meramente como expositora de um discurso. O narrador, que de início é extra-diegético, narrando a situação dos próprios personagens-cineastas, logo parece operar como o narrador do filme que estes mesmos estão construindo, repetindo as hipóteses que estes formularam. O filme alterna entre diversas camadas de diegese constantemente.
Então, corta-se mais uma vez para um visor escuro, com o reflexo de um rosto, e mais uma vez a pergunta "do que você não gosta?" seguida de outros entrevistados dando suas respostas, desta vez mais graves: “morte” , “racismo”, “desprezo”, “medo”. Desta soma surge a “hipótese negra”, o pior cenário possível – um futuro tecno-totalitário. A narração que descreve a hipótese ganha uma complexidade literária maior: logo começa a narrar no pretérito perfeito, como se aquilo já tivesse acontecido e a hipótese negra tivesse se tornado História, tornando os seus agouros mais concretos e mais assustadores; uma hipótese de futuro que, na verdade, assemelha-se a uma projeção do fascismo de 50 anos antes. Faz afirmações anacrônicas para o ano de 1984, como “nos lembramos das grandes revoltas operárias dos anos 90”, e discute as consequências possíveis diretas de eventos (hipotéticos?) recentes: "as peças e ferramentas arremessadas às fábricas no inverno de 1984 [...] levaram ao fracasso da própria imagem da organização sindical". Há um tom de crônica jornalística que dá uma sensação de realismo e urgência. Os cineastas-personagens às vezes parecem interagir com o narrador, como se estivessem cientes dele: olham em direção à câmera, gesticulam, complementam o que ele diz. O trabalho dos personagens-cineastas agora envolve menos imagens de arquivo e mais manipulações eletrônicas, sugerindo um futuro bastante diverso da realidade que conhecemos: num televisor, várias imagens documentais distorcidas ou geradas totalmente artificialmente são moduladas com diversos controles por dois deles, que postam-se ao lado do televisor, voltados para a câmera, apontando para as imagens, como se apresentando o seu trabalho ao narrador e a nós. Nunca chegamos a ver o filme que eles estão produzindo, apenas o processo de produção deste.
Então, a terceira pergunta, que dará origem à hipótese azul: “do que você gosta?” ("qu'est-ce que tu aimes?"): “a criação”, “a reflexão”, “a dúvida”, “o amor”, “aprender, ensinar”, “o cinema”. As imagens manipuladas pelos cineastas ganham um outro caráter, menos social, mais mágicas: trechos de O Mágico de Oz, cavalos correndo na natureza, uma imagem digital que lembra o portal estelar multicolorido de 2001: Uma Odisseia no Espaço. A narração, ao falar dessa hipótese de futuro, aos poucos perde o tom especulativo e fala como se no presente: "a famosa tecnologia não é obrigatoriamente destinada aos que esperam uma forma nova e particularmente insidiosa de poder. Ela revela-se perante nossos olhos como um fabuloso instrumento de transformação do mundo". Logo em seguida, coloca-se no futuro: "então, o que o robô-apresentador do ano 2084 poderia dizer é o seguinte...", e o narrador masculino assume a voz do robô, antes digital e indecifrável. Ainda que ele deixe claro a instância da enunciação, o efeito de verdade histórica dado pela narração no pretérito perfeito hipoteticamente oriunda do ano 2084 é inegável, e mais forte do que nas duas hipóteses anteriores. Imagens de arquivo de manifestações e protestos, projetados nos rostos presentes dos cineastas-personagens que editam na moviola, parecem agora como que protestos do futuro, que ilustram e baseiam a narração que afirma que "os que pressentiam a esperança de uma sociedade diferente haviam razão". A hipótese especulativa do filme, extraída a partir de uma associação livre de palavras que permeiam a consciência coletiva do presente, torna-se, através de estratégias narrativas muito variadas e livres, a afirmação de um futuro que é, portanto, encorajado, incentivado, trata-se na verdade um chamado disfarçado de afirmação futurística hipotética, chamado que assim ganha uma força enorme, por afirmar (ainda que apenas brevemente) como certa a sua verdade e o seu destino. O ensaio vai muito além de discorrer sobre um tema; nessa pequena mistura de gêneros – especulação futurista, narrativa ficcional auto-reflexiva, relato histórico, manifesto político – ele adquire uma liberdade fílmica impressionante, que viaja no tempo a partir primeiro de um recurso narrativo, mas que é operado principalmente de um jogo com os tempos verbais da narração, seus vaivéns, as diferentes vozes que esta assume. A análise que Marker faz da situação do movimento sindical é multifacetada, e menos preocupada com o que este movimento é do que com o que ele pode vir a ser.
A suposta fala do "robô-apresentador", enunciada pelo próprio narrador masculino, chega ao fim; corta-se para um plano que, pelo enquadramento e pela música tomada de John Williams, transforma uma coladeira de película numa das imponentes espaçonaves do Império fascista de Star Wars. O narrador volta para um registro mais sóbrio, diz que tudo isso foi uma forma de celebrar, à sua maneira particular, os 100 anos do movimento sindical, e que todas as hipóteses de futuro, seguramente muito mais do que três, permanecem em aberto. O robô-apresentador "ainda não foi programado [...] ele dirá o que nós quisermos que ele diga" – há um duplo sentido aí – o que de fato Marker fez com que ele dissesse no filme, e o que nós, espectadores, cidadãos, queremos que ele diga. O filme não assume uma posição de autoridade em relação ao espectador. No fim, o narrador não sugere qual futuro seria o mais desejável, apenas deixa claro ao espectador que o futuro está em suas mãos, e que é necessário agir.
Em última instância, construir o futuro que queremos é como fazer um filme: envolve experimentação, imaginação, equipamentos, trabalho – mas um trabalho criativo.
As duas últimas imagens do filme são um close-up da mão de um dos personagens dando play na moviola; desta, corta-se para o visor da moviola, escuro, que não projeta filme nenhum, apenas reflete o rosto de uma das personagens, simbolizando que o futuro será apenas um reflexo de nós mesmos e, portanto, cabe a nós. O verdadeiro ensaio, a verdadeira tentativa (essai), está por ser feita, não pelo filme, mas pelo espectador; e o trabalho é tanto manual quanto deve ser visionário.
– C.E.