one does not need to learn a whole language in order to understand some one or some dozen poems. It is often enough to understand thoroughly the poem, and every one of the few dozen or few hundred words that compose it. – Ezra Pound, How to read
Li a Comédia pela primeira vez no iniciozinho de 2022, na tradução mais que centenária do Xavier Pinheiro, bastante difícil. Recentemente quis me aventurar lendo-a no original, então comprei a edição bilíngue da 34 com a tradução do Italo Eugenio Mauro. A ideia era usar a tradução apenas para consulta, mas para a minha decepção ela é frequentemente tão confusa e cheia de inversões quanto a tradução do Pinheiro, de modo que a falta de correspondência verso a verso dificultava o seu uso para os meus propósitos. Então, apenas para provar a mim mesmo que era capaz de entender aquilo ali, traduzi o Canto 1 linha a linha, sem rima, sem métrica, o mais literal e direto possível, apenas para me forçar a entender todas as palavras que estavam escritas. Uma tradução “técnica” que eu gostaria que existisse para todos os 100 Cantos, para usar de consulta. Se ela tem algum valor próprio, acho que é o de mostrar que o texto de Dante, em sua maior parte, é escrito de forma bem direta e simples de entender – as primeiras características que foram sacrificadas nas traduções que eu li.
DANTE ALIGHIERI A COMÉDIA INFERNO CANTO I No meio do caminho de nossa vida, me deparei por uma selva escura, pois a estrada correta tinha desaparecido. Ai, que dizer como era é coisa dura, essa selva selvagem e áspera e forte que no pensamento renova o medo! É tão amarga que pouco mais é a morte; mas para tratar do bem que ali encontrei, direi das outras coisas que ali me acompanharam. Eu não sei bem dizer como nela entrei, tão cheio de sono estava àquela altura que a verdadeira estrada abandonei. Mas quando cheguei ao pé de um monte, lá onde terminava aquele vale que me enchera o coração de medo, olhei para o alto, e vi a sua encosta já vestida pelos raios do planeta que certo guia os outros por todos os caminhos. Então acalmou-se um pouco o medo que no lago do meu coração perdurara por toda a noite que passei com tanta angústia. E como quem, com respiração ofegante, tendo escapado do pélago à margem, volta-se à água perigosa e a encara, assim a minha alma, que ainda fugia, voltou-se para trás, para olhar de novo a trilha que não deixou jamais pessoa viva. Depois que repousei um pouco o corpo lasso, retomei o caminho pela encosta deserta, de tal forma que o pé firme era sempre o mais embaixo. E eis que, quase no início da subida, uma onça ligeira e muito rápida, que de pelo malhado era coberta; e não saía da frente da minha cara, pelo contrário, tanto impedia o meu caminho que eu para voltar dei mais uma meia-volta. Tempo era do início da manhã, e o sol ia subindo alto com aquelas estrelas que estavam com ele quando o amor divino primeiro moveu aquelas coisas belas; de tal forma que me davam motivo para boas esperanças, quanto àquela fera de pelo brilhoso, a hora do dia e a doce estação; mas não tanto que medo não me desse a visão que me surgiu de um leão. Este parecia que vinha contra mim, com a cabeça erguida e fome raivosa, tanto que parecia fazer o próprio ar tremer. E uma loba, que de tanta voracidade parecia carregada em sua magreza, e que muita gente já afligiu, essa me suscitou tanta gravidade com o temor que saía de sua vista que eu perdi a esperança do cume. E como quem alegremente adquiriu bens, chegando o tempo que os faz perder, em todo o seu pensar chora e se entristece, assim me deixou a inapaziguável fera, que, vindo de encontro a mim, pouco a pouco me repelia lá para onde o sol se cala. Enquanto eu despencava para baixo, perante os olhos ofertou-se-me alguém que, devido a longo silêncio, parecia emudecido. Quando o vi no enorme deserto, "Miserere de mim", gritei-lhe, "seja o que for, sombra ou homem certo!". Respondeu-me: "Homem não, homem já fui, e meus pais foram lombardos, ambos da pátria mantuana. Nasci sub Julio, ainda que tardiamente, e vivi em Roma sob o bom Augusto, no tempo dos deuses falsos e mentirosos. Poeta fui, e cantei aquele justo filho de Anquises que veio de Troia, depois que a soberba Ílion foi combusta. Mas tu, por que tornas a tanta inquietação? Por que não sobes o dileto monte que é princípio e causa de toda alegria?". "Ora, tu és aquele Virgílio e aquela fonte que expande com a fala tão largo flume?", eu respondi, com o rosto envergonhado. "Ó, honra e lume dos outros poetas, valha-me o longo estudo e o grande amor que me fez buscar o teu volume. Tu és o meu mestre e o meu autor, tu sozinho és aquele de quem eu colhi o belo estilo que me tem honrado. Veja a fera por cuja causa eu me voltei; ajuda-me com ela, famoso sábio, que ela me faz tremer as veias e os pulsos." "A ti convém ter outra viagem", respondeu, depois que me viu lacrimejar, "se quiseres escapar deste lugar selvagem; pois essa fera, por cuja causa tu gritas, não deixa mais ninguém passar pelo seu caminho, tanto impede que mata; e é de natureza tão malvada e pecaminosa que nunca satisfaz sua voracidade, e depois da refeição tem mais fome do que antes. Muitos são os animais com quem acasala, e ainda mais serão, até que enfim o lebréu virá, que fará ela morrer dolorosamente. Este não irá nutrir-se de terra nem de peltre, mas de sabedoria, amor e virtude, e sua nação será entre feltro e feltro. Da humilde Itália será a saúde pela qual morreram a virgem Camila, Euríalo e Turno e Niso, feridos. Esse a caçará por cada vila, até tê-la devolvido ao inferno, lá de onde a inveja primeiro retirou-a. Daí que, pelo teu bem, penso e discirno que tu me sigas, e eu serei teu guia, e levar-te-ei daqui para lugar eterno, onde escutarás os gritos desesperados, verás os antigos espíritos dolentes, que gritam, cada um deles, à segunda morte; e verás aqueles que estão contentes no fogo, pois esperam por ir, quando o momento for, à beata gente, às quais, depois, se tu quiseres subir, haverá alma mais digna do que eu para tal: com ela te deixarei na minha despedida; pois aquele imperador que lá no alto reina, por eu ter sido rebelde à sua lei, não quer que eu vá à sua cidade. Por toda parte impera, e de lá comanda; lá é a sua cidade e sua alta sede: oh, feliz aquele que ali Ele elege!" E eu a ele: "Poeta, eu te rogo, por aquele Deus que tu não conheceste, para que eu fuja deste mal e de piores, que tu me guies lá aonde acabaste de dizer, tal que eu veja a porta de São Pedro e aqueles que tu me imprimes tão lugubremente". Então moveu-se, e eu o segui por detrás.
Eu tenho reparado que a ordem sintática (normal ou invertida, etc.) é mesmo o primeiro elemento sacrificado na tradução de poesia, em relação a outros mais formalizados (o metro, a rima...). Me parece que isso fica bem evidente nas traduções do Baudelaire, cuja força poética também vem dessa expressão direta e simples. Afinal, o significado de algo é muito se é dito de forma simples ou complicada: já começa por caracterizar o enunciador de uma forma ou de outra, de duas formas diversas.
"one does not need to learn a whole language in order to understand some one or some dozen poems. It is often enough to understand thoroughly the poem, and every one of the few dozen or few hundred words that compose it." – Ezra Pound, "How to read"