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Segue a introdução.
Assim, como toda a desgraça – se é que podemos usar aqui esse termo – remontava unicamente à posição parcial de Lúcifer, ainda faltava à criação a melhor de suas partes. Afinal, se essa porção da criação possuía tudo o que pode ser obtido pela concentração, faltava a ela ainda todo o mais que só pode ser gerado a partir da expansão.
– Goethe1
A ORGANIZAÇÃO DO ESPAÇO NO FAUST DE MURNAU2
MAESTRIA DO ESPAÇO
De todos os cineastas, F. W. Murnau é talvez aquele que soube organizar o espaço de seus filmes da maneira mais rigorosa e mais inventiva. A primeira impressão que suas obras provocam é a de uma animação da superfície inteira da tela, em seus menores detalhes, a cada instante da projeção. Impressão, portanto, de uma maestria absoluta de todos os elementos que contribuem à expressão plástica e de uma imaginação apta a incessantemente criar e combinar novas formas.
O filme Faust – Eine deutsche Volkssage3 parece-nos prestar-se particularmente a um estudo da organização de seu espaço. A força da expressão plástica toma evidentemente a vantagem sobre o enredo, neste drama conhecido por qualquer espectador. Seus contemporâneos o haviam apreciado, e nós mesmos o apreciamos como uma espécie de ópera visual, a mise en scène tomando o lugar da partitura.
Quaisquer que sejam, na verdade, a força e a profundidade do tema, tal como o herdamos do Volksbuch4 e do drama de Goethe – que o filme segue de perto, à parte o episódio da peste5 –, os méritos que remetem ao "argumento"6 são evidentemente menores aqui do que nas duas obras imediatamente anteriores de Murnau, Der letzte Mann e Herr Tartüff, dotadas da marca de Karl Mayer, seu roteirista. Que, desta vez, Murnau tenha prescindido precisamente da colaboração de Mayer deverá nos permitir melhor assimilar, em estado puro, a arte da sua mise en scène. O roteiro de Faust é obra do poeta Hans Kyser7. Murnau levou a cabo numerosas modificações, como testemunha um exemplar datilografado que traz nas margens suas anotações manuscritas.8
Mas a questão não se encontra aí. Quaisquer que sejam as suas qualidades, esse texto, para efetuarmos a nossa comparação, não vale nem mais nem menos que um libreto de ópera. Não pressupõe nada da música, e permite entregarmo-nos inteiramente ao prazer dela, esquecendo-nos de Kyser – e de Goethe, como o esquecemos ao escutar Berlioz, Gounod ou Schumann.9
Neste filme, enfim, Murnau, no auge da sua carreira, soube e pôde incorporar na obra todos os meios capazes de lhe garantir a maestria total do espaço de que falamos. Todas as formas, tanto as dos rostos, dos corpos, dos objetos, como as das paisagens ou dos elementos naturais – a neve, a luz, o fogo, as nuvens – são modeladas ou remodeladas à sua vontade com uma ciência consumada do efeito. Jamais uma obra cinematográfica especulou tão pouco sobre o acaso.
OS TRÊS ESPAÇOS
O termo espaço, no cinema, pode designar três noções diferentes:
1) O espaço pictórico. A imagem cinematográfica, projetada sobre o retângulo da tela – por mais fugaz ou móvel que seja – é percebida e apreciada como a representação mais ou menos fiel, mais ou menos bela de tal ou tal parte do mundo exterior.
2) O espaço arquitetônico. Essas próprias partes do mundo, naturais ou fabricadas, tais como a projeção sobre a tela as nos representa, com mais ou menos fidelidade, são dotadas de uma existência objetiva, podendo também esta ser, enquanto tal, objeto de um julgamento estético. É com esta realidade que o cineasta se mede no momento da rodagem, que ele a restitui ou a trai.
3) O espaço fílmico. Na verdade, não é do espaço filmado que o espectador tem a ilusão, mas de um espaço virtual reconstituído em seu espírito, com a ajuda dos elementos fragmentários que o filme lhe fornece.
Esses três espaços correspondem a três modos de apercepção pelo espectador da matéria fílmica. Eles resultam também de três andamentos, geralmente distintos, do pensamento do cineasta e de três etapas de seu trabalho, nas quais ele utiliza, em cada uma, técnicas diferentes. A fotografia no primeiro caso, a cenografia no segundo, e a mise en scène propriamente dita e a montagem no terceiro. Para cada uma destas operações, ele convoca colaboradores especializados cujas sensibilidades cabe a ele pôr em acordo, a fim de que sua obra forme um todo coerente. Inútil sublinhar que a um enorme número de filmes falta esta unidade e que, por exemplo, as ambições da fotografia traem o espírito no qual foram construídos os cenários, isso quando não simplesmente frustram os elãs da mise en scène.
Mas, em Faust, ainda mais que nos outros filmes de Murnau, os diferentes andamentos criadores se interpenetram a tal ponto que é frequentemente difícil dizer se tal ideia é uma ideia de fotografia, uma ideia de cenário ou uma ideia de mise en scène, por exemplo no famoso Prólogo no Céu que abre o filme. Não está nas nossas intenções aqui pesquisar a parte que remete a tal ou tal técnico ou ao próprio realizador e pesar seus respectivos méritos. Nós remetemos ao livro de Lotte H. Eisner e aos testemunhos que ele contém10, e nos contentaremos em dar o nome destes colaboradores, assinalando os principais filmes nos quais trabalharam antes e depois de Faust.
a) Encontramos o nome de Karl Hoffmann, diretor da fotografia11, nos créditos de: Der Knabe in Blau (1919), Sehnsucht (1920) e Der Januskopf (1920), de Murnau; Homunculus, de Otto Rippert (1916); Die Nibelungen: Siegfried e Die Nibelungen: Kriemhilds Rache, de Fritz Lang (1923-4), em colaboração com Günther Rittau; Ungarische Rhapsodie, de H. Schwarz (1929); e Der Kongress tanzt, de Erik Charell (1931).
b) Os cenários, os figurinos e os panos de fundo são obra de Robert Herlth e Walter Röhrig. O segundo trabalhou no Caligari de Robert Wiene, em colaboração com Hermann Warm, a partir das maquetes de Walter Reimann. Encontramos os nomes de Herlth e Röhrig associados em Der müde Tod de Fritz Lang (1921); Der Schatz, de G.W. Pabst (1923); Der letzte Mann, de Murnau (1924); Zur Chronik von Grieshuus de Arthur von Gerlach (1925); Herr Tartüff, de Murnau (1925).
De minha vida – Poesia e verdade, 2ª Parte, 8º Livro. Editora UNESP, São Paulo, 2017, pp. 422-3. Traduzido do alemão por Maurício Mendonça Cardozo. A correspondência com a tradução em francês apresentada no original não é exata, e os grifos são oriundos dela ("Tout le malheur venait simplement de la direction à sens unique suivie par Lucifer. Il manquait à sa création la meilleure moitié: tout ce qui est acquis par concentration elle le possédait, mais lui faisait défaut ce qui ne peut être produit que par expansion."). [N. do T.]
Esta tese de doutorado foi defendida perante a Universidade de Paris I em 1972.
Reproduziremos os títulos dos filmes no seu idioma original, enquanto usamos os nomes das personagens em Português. No original, Rohmer utiliza sempre que possível a variante francesa de títulos, como "Tartuffe", e também de nomes, por exemplo "Marguerite" [N. do T.].
A tradição popular da lenda do Dr. Fausto.
E ainda este é sugerido por uma passagem da peça (Vv. 1026-1055). Voltaremos a isso no nosso capítulo II, p. 33. Por outro lado, não encontramos nenhuma referência ao Faustus de Marlowe, apesar de citado nos créditos.
Retemos, aqui e em vários outros casos, o uso de aspas como consta no texto original [N. do T.].
Que por sua vez é inspirado numa decupagem prévia de Ludwig Berger: Das Verlorene Paradies. Cf. Eisner p. 56.
Cf. Eisner p. 56 et sqq.
Que compuseram, respectivamente, La damnation de Faust, a ópera Faust e Szenen aus Goethes Faust [N. do T.].
Principalmente o de Robert Herlth, p. 65 et sqq.
Apelidado, por Robert Herlth, de "O Mago": "Mit Recht hat man ihn den Zauberer genannt" ("Ele já foi justamente chamado de O Mago") (Homenagem do Deutsches Institut für Film und Fernsehen, Munique, 1965).