Preâmbulo (em forma de notas): sobre o cinema com e sem mise en scène1.
É possível retraçar, na história do cinema, uma tendência dominante em direção a um cinema da tela2, no qual a preocupação fundamental do diretor é identificar as suas próprias exigências expressivas com os materiais rigorosamente cinematográficos que a tela lhe oferece: luzes e sombras, ritmos e pausas, sons e silêncios. A imagem é presença sobre a tela, e em tal presença tende a esgotar a sua própria função expressiva. A ausência de diferença semiológica entre significante e significado, característica ao cinema, é aqui também um estatuto estilístico. Por um lado, distrair-se da tela, deixar de ver ou de ouvir alguma coisa, significa também, no limite, deixar de entender alguma coisa; por outro, tudo o que é ausente da tela também é insignificante – não há nada além da tela. Num tal modo, a imagem (a imagem-som) impõe a sua própria perfídia semântica, a sua própria adstância3 irrenunciável, fazendo do espectador o súdito de uma comunicação unidirecional, o fruidor de um "espetáculo" que apresenta-se a ele pelos modos da mise en scène, como se posto em movimento anonimamente por um diretor-demiurgo, re-criador de um microcosmo sem equivalência na "vida", feito para esgotar-se na escuridão de uma sala de projeção.
O cinema (o cinema que podemos convir chamar de "clássico" e que podemos identificar nos principais aportes estilísticos de autores como Griffith e Murnau, Eisenstein e Stroheim, Lang e Hawks, Sternberg e Dreyer, Mizoguchi e Hitchcock4) no qual importa, a depender do caso, os valores perceptivos das imagens, a construção calibrada dos enquadramentos, o ritmo da montagem, a articulação do récit, a densidade ou a estilização da cenografia, a interpretação que atém-se estritamente a expressões faciais e comportamentos determinados, o cinema no qual, em suma (mais além das diferenças que separam um autor do outro), não há a fungibilidade de imagens e sons, esse cinema, eu ia dizendo, pode ser utilmente definido como cinema da imagem autoritária. Nele, a imagem – em sentido amplo – tende a ser espoliada da sua própria ambiguidade para dar lugar a um sentido emergente que, embora postulando a co-presença de sentidos sedimentários, subordina-os; o filme apresenta-se, assim – ao espectador "tenso", grudado à tela, e não "relaxado", distanciado – com uma chave de visão sempre já modelada e privilegiada: uma intriga pela qual apaixonar-se, um personagem no qual projetar-se, uma "realidade" a se "reconhecer".
Podemos observar o desenvolvimento e a afirmação dessa imagem autoritária no refinamento de uma técnica narrativa e figurativa que só o "novo cinema" parece ter colocado definitivamente em crise. A elaboração dos "gêneros" (no cinema americano clássico) enquanto desenvolvimento e adequação à dinâmica cinematográfica das "retóricas" já formuladas pelo romance do século XIX; a criação de um conceito de realismo propriamente cinematográfico, fundado sobre as características técnicas de analogia da imagem fotográfica com a realidade profílmica; a construção de uma iconografia que com o tempo foi se "fixando" em estereótipos de interpretação (o estrelismo), de composição imagética e de estrutura de cena5; estes parecem-me os elementos principais que permitiram ao cinema desenvolver-se como cinema de mise en scène. E isso não apenas nos Estados Unidos (a cujos filmes os Cahiers du Cinéma mais frequentemente aplicaram essa fórmula6) mas também em outros países onde a estereotipia iconográfica e narrativa resulta talvez menos codificada, mas onde demonstra-se igualmente forte o elemento de fundo que sustenta esse tipo de cinema: o seu poder de fascinação, a sua capacidade de se apresentar –justamente enquanto analogon7 da realidade (das aparências comportamentais) – como uma outra realidade. O cinema da tela postula o filme como um círculo fechado em si mesmo, governado por leis próprias, no qual adentra-se pelo preço, caro mas necessário, de um isolamento da realidade do mundo; consequentemente, a experiência que o espectador tem do filme possui um caráter sobretudo contemplativo (seja a contemplação de uma harmonia ou de uma contradição, tanto faz); a plenitude dessa experiência basta a si mesma, conclui-se dentro da obra, exclui a ação prática sobre a realidade externa.
Não faltam exceções ao meu rígido esquema orientativo, mas penso que essas são quase sempre ou absorvidas ou isoladas, sem, portanto, serem capazes de expandir a carga renovadora que possuem. Penso em um filme como A Greve, prodigiosamente inclinado em direção à reinvenção da linguagem cinematográfica, cinema metafórico misturado a um cinema metonímico, alusivo e poderosamente figurativo ao mesmo tempo, o qual foi negado em seus princípios por um Eisenstein cada vez mais inclinado aos esplendores da tela de Ivan, O Terrível8; ou ao silêncio que por anos amorteceu a força autenticamente revolucionária do cinema de Dziga Viértov, redescoberto só agora, e apenas por alguns de seus aspectos – mas o "cinema do cinema" já encontra-se todinho em Um Homem Com Uma Câmera; ou ao esquecimento (inocente?) de que foi vítima um filme que, visto hoje, faz com que até mesmo Godard pareça menos novo: Okraina (1933), de Boris Barnet; e ainda, para passar à outra escola que, dados os pressupostos culturais dos quais se originava, poderia ter se oposto à americana – o expressionismo alemão –, quem melhor do que Karl Heinz Martin, do esquecido mas surpreendente Von Morgen bis Mitternacht (1920), tinha formulado a hipótese de um cinema que deformava a realidade física, opondo-se a todo "realismo"? Mas os tempos ainda não eram maduros o suficiente para tal operação, evidentemente, se o melhor do cinema alemão, de muito longe, encontra-se nas obras de Lang e Murnau, talvez não por acaso destinados a encontrarem na América meios mais adequados para os seus propósitos.
Nos limites da "tela", o cinema tende a afirmar-se como instrumento de domínio linguístico; a imagem finge "dizer tudo", enquanto na realidade ela diz aquilo que se quer que ela diga: ela, imposta ao espectador como um fim em si mesma, e não revelada como um meio, poderá servir então para dobrar a realidade do mundo a uma harmonia que não lhe cabe (o "sonho americano") ou para impor a ela um sentido (no caso do diretor crítico dessa realidade)... Mas hoje, perante esse cinema, sente-se cada vez mais a falta, e a necessidade, de algo que leve a um verdadeiro cinema de contestação: de uma consciência da linguagem, de uma crítica da realidade através da crítica da linguagem que a "faz falar", e da conseguinte crise de uma e da outra.
É esse o autre cinema – cinema sem "domínio" – que indica Godard, que pode ser observado, em diversos níveis, em autores como Straub, Bertolucci, Pasolini, Skolimowski, Lefebvre, Goldman ou Makavejev (o novo cinema); de que compartilham, renovando-se, "velhos" diretores em obras surpreendentes como A Countess From Hong Kong, Red Line 7000 ou Beyond a Reasonable Doubt; que Viaggio in Italia antecipava há mais de 10 anos e que Persona, hoje, reafirma com extraordinária e meditada simplicidade.
É um cinema que, tendo deixado de acreditar na realidade das aparências – e portanto na "bondade" de uma operação estilística que funda-se sobre o "respeito" a tal realidade, reproduzindo-a com o mínimo de "deformações" possíveis, ou então sobre a recriação de um outro microcosmo de aparências –, paralelamente deixou de acreditar na tradição do cinema "clássico". Melhor dizendo, é um cinema que morde a tradição, assimilando-a, digerindo-a, rejeitando-a (a mesma tradição que alguns dos diretores citados contribuíram para que se formasse e resplandecesse, daí a surpresa explícita: Lang faz The Woman in the Window e Beyond a Reasonable Doubt, Hawks faz Red River e Red Line 7000, Chaplin faz Limelight e A Countess From Hong Kong. A tradição revolta-se contra si mesma antes de morrer?). A tradição é rejeitada no momento em que esta atinge um ponto de saturação absoluto e em que a cultura cinematográfica encontra-se suficientemente difundida a ponto de fazer do cinema um objeto de estudo, um fato cultural aceito (pela primeira vez, com a "nouvelle vague", o cinema alude ao cinema, e o fundo cultural de onde emergem as obras dos jovens realizadores é constituído acima de tudo por clássicos do cinema). Da tradição, é despedaçado em primeiro lugar o mecanismo narrativo, o princípio dominante da história como concatenação lógico-cronológica de acontecimentos; mas isso não é ainda uma novidade: contribuições renovadoras, no sentido em que liberaram o cinema de limitantes vínculos literários ou teatrais, desenvolvendo um récit mais correspondente às características específicas da sua linguagem, podem ser apreciadas tanto no "velho cinema" (Murnau, Lang, Hitchcock), em direção a um récit "construído", quanto no "novo cinema" (Rossellini, Godard), em direção a um récit "livre". Nesse nível, se algo, um passo avante pode ser representado pela tentativa de eliminação de qualquer récit (como no caso do "new American cinema"). A verdadeira novidade do novo cinema está, em vez disso, sobretudo em ter estilhaçado, ou rachado, a figuratividade da imagem, o código iconográfico que a regulava e o tipo de relação tela-espectador ao qual ela era subordinada.
Não se trata apenas de contrastar isso ao naturalismo evidente, pelo contrário. A operação, aqui, mais sutil do que a operação "deformadora" levada a cabo pelos soviéticos (a nível de montagem) e pelos alemães (a nível de luz e de cenografia), é a de esvaziar a imagem da sua condição de imagem, isto é, de uma convenção que fez da imagem cinematográfica a negação do conceito; restituir a ela sua profundidade e ambiguidade originais, exibindo-a; fazer da imagem, paradoxalmente, o meio e não o fim da comunicação; o meio para se transmitir algo que está além das imagens: os conceitos – as ideias – dos quais as imagens são, em última instância, nada mais do que o resíduo figurativo. Esse resíduo, muitas vezes informe (as imagens grosseiras de Rossellini, as imagens pobres e banais do último Lang americano, as imagens sem graça do último Chaplin, as imagens "fungíveis" de Masculin Féminin9), noutras tão rigoroso quanto as imagens "da tela" (Walkower remete a Hawks, Echoes of Silence a Murnau, Nicht Versöhnt a Bresson), é a chave estilística de um cinema que determina a si mesmo que forneça ao espectador o "espaço" suficiente para que este possa pensar "entre as imagens": como dizia Godard a respeito de India: "l'image n'est que le complément de l'idée qui la provoque" ["a imagem é apenas o complemento da ideia que a provoca"].
Paradoxalmente, eu disse, porque a empreitada tem tudo para ser desesperadora: qual o sentido para o realizador, e mais ainda para o crítico que assim interpreta a sua obra, atribuir à imagem cinematográfica características que essa, em sua própria constituição, não pode ter? Qual o sentido em afirmar que para tais obras o olho não deve limitar-se a ver as imagens mas, depois de tê-las visto, deve ultrapassá-las, melhor ainda, pensá-las, pensar? Em suma, e disso não se pode discordar: imagens e sons estão sempre ali, presentes sobre a tela, trate-se de cinema tradicional ou do novo cinema; se as estruturas narrativas podem mudar, por outro lado, como observa Metz, as leis fundamentais da inteligibilidade fílmica não mudam10; se a imagem torna-se fotograficamente menos resplandecente, mais opaca e "feia", ou se declara a sua condição de imagem, nem por isso ela deixa de ser imagem. Substancialmente, deve-se dizer, não é o cinema, enquanto linguagem, que muda, mas a atitude do realizador para com a linguagem cinematográfica e para com o espectador; é a relação autor-cinema-espectador que muda, e que torna-se declaradamente uma relação a três: aqueles conceitos, aquelas ideias que podiam parecer um pouco platônicas, não são portanto outra coisa que as ideias suscitadas pelo diretor; ideias não "reduzidas" a imagens, mas ideias que o espectador, indo além da tela, tem a possibilidade de conhecer e discutir junto ao autor – não mais demiurgo que maneja os fios invisíveis de um drama, mas presente junto à obra, fora do anonimato.
Será que isso significa que, para o cinema, é chegada a hora de contradizer a afirmação segundo a qual seria impossível "filmar o invisível, portanto o infilmável", para enfim fazer do cinema um "discurso mental"? Se até o momento o cinema esteve limitado, na maioria das vezes, a filmar o "filmável", a realidade das aparências, a criar imagens que tendiam a exaurir a sua função manifestando-se sobre a tela, se o cinema esteve limitado a ser um cinema no qual o espectador é convocado para reagir e não para agir, no qual "l'effet dévore la cause, la fin a absorbé le moyen" ["o efeito devora a causa, o fim absorveu o meio"] (Valéry), agora, em vez disso, deparamo-nos perante uma outra possibilidade de cinema, um cinema de ideias, no qual a imagem, sozinha, é incompleta: ela – resíduo presente – alude a uma ausência, completa-se "no pensamento, onde pode originar outros pensamentos"11, e portanto postula a ação integradora do espectador. O cinema sem mise en scène, se ele "abstrai-se da concretude imediata" – em cujos limites moveu-se o cinema de mise en scène –, se ele instaura a relação tela-espectador sobre novas bases, é a fim de "alcançar a concretude autêntica"; em última instância, aquelas que podem ser definidas marcusianamente como as imagens "transcendentes" do novo cinema são uma indicação – quero dizer, não a forma definitiva – de um discurso cinematográfico que supere "a consciência infeliz de um mundo dividido, no qual 'aquilo que é' não contém, pelo contrário, rejeita 'aquilo que pode ser' "12.
Sobre Ingmar Bergman: dos filmes da afirmação aos filmes da ambiguidade.
O cinema de Bergman, no plano diacrônico, e Persona, no plano sincrônico, constituem casos exemplares da presença de imagens autoritárias e de imagens transcendentes; e como tais são tomados no contexto deste artigo.
Em Bergman, o cinema torna-se problemático a partir de Luz de Inverno. Antes disso, a tendência à afirmação – pode ser a afirmação de uma dúvida, o problema continua o mesmo – o havia levado a obras nas quais os planos, a montagem, o arco narrativo tendiam a impor uma construção externa que limitava o seu alcance. A ambiguidade inerente aos conflitos ideológicos escolhidos como "tema" era anulada por uma sucessão de manifestações apodíticas deste mesmo tema: pela sua "mise en scène". No limite, o cinema do primeiro Bergman é monossêmico: cada plano tende a evitar a ambiguidade, evitar ser si mesmo e mais que si mesmo. A sua "trupe" de atores, retomada filme após filme, permite a Bergman, um pouco como a Hitchcock (que serve-se, com o mesmo objetivo, da elaboração plástica de situações e objetos), construir um ritual: uma expressão, um gesto, um olhar dizem, comunicam, estão sobre a tela como sinais prontos para serem captados e decifrados por um espectador já "iniciado" no código das imagens autoritárias de Bergman. Em última análise, é justamente esse o verdadeiro conteúdo dos filmes do primeiro Bergman: a sua forma, isto é, a harmonia da linguagem – o domínio da linguagem – que coloca a angústia que poderia surgir de uma realidade desnudada dentro de uma redoma de vidro: é o "teatro", a "arte" que embalsama a vida.
Teremos a apoteose dessa dialética teatro-vida, sonho-realidade, em Juventude, inscrita no próprio arco narrativo (o passado que volta como instante irrepetível de harmonia, e que é repelido pela dança); teremos o triunfo da construção, o hino ao artifício (o cinema como obra de um "mago" que detém os fios de uma intriga complexa, da qual o espectador pode apenas admirar a perfeição13) em Sorrisos de uma noite de amor. Teremos também o evidente desacordo entre o material e a estrutura, esta muito artificiosamente sobreposta àquele, em filmes como Quando as mulheres esperam, No limiar da vida ou Morangos silvestres; o Bergman que quer aproximar-se com mais simplicidade da vida não é simples o bastante – e frequentemente não é construtor o bastante para reelaborar em todos os níveis o seu material: ele entende que o jogo é jogado com as cartas ocultas, que deve tentar assustar o espectador iludindo-o, em vez de fazê-lo pensar (O rosto). O Bergman mestre de marionetes sente o impasse desta situação, mas ainda não tem a coragem de renunciar ao teatro em prol da vida – isto é, do cinema.
A trilogia assinala essa passagem, esse verdadeiro renascimento. Se a beleza do primeiro Bergman, na sua raiz, encontra-se toda numa questão que o autor se coloca – o cinema é Lumière? (questão que é ocultada pela resposta negativa: é Méliès) –, a beleza do segundo Bergman é a de quem resolveu tal questão através da dolorosa experimentação consigo mesmo: sim, o cinema é Lumière, mas isso ainda não significa nada, quer dizer apenas que é necessário redescobrir o cinema, como descobriu-o Lumière (e Rossellini, e Godard). Sobretudo com Luz de Inverno, deparamo-nos com um novo Bergman. Pela primeira vez com tanta nitidez – sem a casualidade de um cinema de momentos belos, sem a felicidade do instante perfeito que distingue a sua primeira fase (quantos fragmentos a se preservar nesses filmes...) –, Bergman filma os rostos de Gunnar Björnstrand ou de Ingrid Thulin recusando-se metodicamente a modelar sobre esses qualquer "signo" que reduza a sua ambiguidade; os longos planos próximos não querem dizer nada: existem, e dizem tudo.
Por quê, então, filmar aquele rosto, se nada parece determiná-lo a ser montado naquele momento do filme, se nenhum detalhe esclarece (limita) o seu significado? O que eu, espectador, devo ver sobre o rosto demoradamente presente de uma mulher lendo uma carta? Bergman não mo diz mais, nem mo diz mais o emparelhamento de rostos e olhares na montagem. O material parece compor-se sozinho, justapondo-se sem um sentido, mas com muitos sentidos, no limite aberto a todos os sentidos que eu, espectador, souber imprimir-lhe (não livre para impô-los, é claro, mas guiado apenas por um vestígio, por uma hipótese semântica). O que quer dizer, então, um plano geral do corpo quase invisível de um suicida, e o que quer dizer uma referência fugaz aos chineses, sem outros pontos de apoio? O que quer dizer, em suma, esse cinema de dúvidas, onde eu, espectador, acabo sendo forçado a preencher o vazio que circula entre as imagens, enquanto que, antes, eram elas, com a sua apoditicidade de portadoras de ideias claras e distintas, que preenchiam o meu vazio de expectador não-pensante, pronto para receber, enquanto que antes era o filme que era esvaziado para dentro de mim – sem "preencher-me" verdadeiramente? Pois bem, o cinema de Bergman tornou-se verdadeiramente um cinema de questionamentos, não uma mise en scène de questionamentos; um cinema de pensamento, uma discussão do autor com o espectador através da obra, imagem-pretexto para essa discussão; até mesmo a harmonia utopística, antes confiada a uma estilística codificada que, de toda forma, preservava a sua derrota (a dança atenua a morte em Juventude, a perfeição da intriga esconde a vaidade de uma fuga em Sorrisos de uma noite de amor), pode agora ser assumida abertamente, sem "ilusões estilísticas".
Mas, se no que diz respeito à passagem dos "filmes da afirmação" aos "filmes da ambiguidade", Luz de Inverno é o antecedente mais imediato de Persona, no que diz respeito ao processo estilístico que Bergman inflige ao próprio material é preciso ter em mente um outro filme, de que se fala pouco, talvez por ser "inconveniente": Para não falar de todas essas mulheres.
Em ambos os casos, para começar, não obstante a fisicalidade que caracteriza os últimos filmes de Bergman – os rostos nus de Luz de Inverno, os corpos transbordantes de sensualidade de O Silêncio –, é hipotetizado um cinema da ausência: em Persona, o momento físico (momento presente) e o momento ausente convergem (o cinema da tela é contestado após ter se manifestado como tal: as imagens são "belas", mas perecem); em Para não falar de todas essas mulheres, prevalece o momento ausente (enquanto "lugar" privilegiado, e utopístico, de uma harmonia que o momento presente contradiz continuamente com o "mau-gosto" dominante). Não penso, apenas, nesse último filme, no grande Felix, violoncelista famoso e venerado de quem ouve-se apenas uma voz ambígua14 e não se vê nada além de uma pálida silhueta ou uma mão; mas no princípio estilístico dominante que consiste – para usar uma terminologia útil introduzida recentemente15 – na valorização do espaço fora-de-campo da mesma forma que do espaço em campo: ver, por exemplo, o uso sistemático que Bergman faz do sonoro para sugerir uma ausência (Felix roncando no pavilhão; o pássaro que "desfigura" Cornelius no jardim ou a mosca que o importuna durante o banho; a voz de Felix vinda do interfone; e, ao longo de todo o filme, a música do violoncelo). Então, por quê surpreender-se com a voz (real? imaginária?) de Elizabeth dizendo a Alma "É melhor ir para a cama, senão vai dormir em cima da mesa", ou com o "encontro" noturno, ou com a visita do marido em Persona? As categorias de "real" e de "imaginário" não subsistem mais como categorias racionalmente distinguíveis, que excluem-se mutualmente: o ausente e o presente coincidem – por uma vez – na imagem cinematográfica, cuja função e cujo valor são reinventados: ela é, simultaneamente, concretude e abstração (conceito).
E, ademais, o que dizer do tempo e das personagens de Para não falar de todas essas mulheres (ambos concebidos com uma ousadia digna de L'Année dernière à Marienbad), a não ser que eles escapam do "bom senso" das análises de tipo narrativo que estamos acostumados a fazer (ou a ler) – segundo as quais num filme os dias também têm 24 horas e as personagens têm nome, sobrenome, carne e osso – para figurarem antes como estruturas portadoras de significado, seguramente às custas da sua "concretude" (nada mais "falso" do que Para não falar de todas essas mulheres e L'Année dernière à Marienbad)? E como não ver, portanto, nessa audaz operação, o preâmbulo teórico
(seria Para não falar de todas essas mulheres um exemplo anormal de "cinema ensaístico sobre cinema"?) à redução do tempo e dos personagens a metáforas em Persona (o verão é a estação que dilata o instante de harmonia – o baudelairiano "tout n'est qu'ordre et beauté/luxe, calme et volupté" ["tudo é apenas ordem e beleza/luxo, calma e voluptuosidade"] – e que ao mesmo tempo prenuncia o seu fim; as duas mulheres, e o menino, e o marido, são presenças-ausências, resíduos figurativos e narrativos de um conceito)?
Quanto à operação "estranhante" de Persona – o cinema no cinema, que exibe a perecibilidade da imagem –, essa é dilatada em Para não falar de todas essas mulheres pelas piscadelas que os atores dão para o público, pelas citações (de Chaplin – os longos planos fixos, a abstração metafórica do espaço da Villa Tremolo – e dos outros cômicos do mudo), pela miscigenação de estilos da decoração e do figurino, pela inserção de intertítulos, pelas canções "viradas" e brutalmente intercaladas, pelos fotogramas fixos e, ainda mais sutilmente, pelas adições ilógicas entre uma sequência e outra e, dentro de uma mesma sequência, entre um plano e outro16.
Sobre Persona: a utopia que não é da tela.
O último filme de Bergman apresenta-se como uma ampla metáfora; a sua estrutura forma o esqueleto não apenas da história particular que é narrada a nível denotativo e diegético, mas também das várias outras que, sem descontinuidade, vão se desmembrando (metaforicamente, justamente) da primeira. Esta, na sua "vagueza", solicita aquelas. A tela não exaure o pensamento do espectador – as imagens são "belas", mas são "aparências" declaradas como tais; as "personagens" não têm peso como seres "reais", são, no limite, "criaturas"-pretexto que servem de "fio condutor" a uma estrutura-pensamento que Bergman delineia e que o espectador, a partir deste vestígio, integra. A ambiguidade do filme – o que devo eu ler sobre o rosto impassível de Elisabeth Vogler? o que se esconde por trás de uma sua contração, um seu sorriso, um seu silêncio? – é o signo da sua polissemia, é o seu encaminhamento para o labirinto das interpretações (um labirinto onde é fácil perder-se, se assume-se uma única interpretação como exaustiva) mascaradas e endossadas pela transparência com a qual o filme apresenta-se sobre a tela: planos simples, entradas e cortes ritmados como uma palpitação vital, soluções ousadas que recuperam a felicidade expressiva do procedimento descoberto pela primeira vez (portanto, não ainda "procedimento").
Mas, no mínimo, a ambiguidade de Persona permite ver com suspeita todo esclarecimento crítico do filme que baseie-se mais na estilística do primeiro Bergman do que na do segundo; que baseie-se nas categorias da "história" determinável no seu desenvolvimento (Elisabeth entrou ou não no quarto de Alma? O marido realmente chega na ilha?), ou do "personagem" verificável na sua psicologia (O que provocou o silêncio de Elisabeth durante a apresentação teatral? Que relação liga Alma a Elisabeth?); em imagens caracterizadas por um sentido "emergente" unívoco. Persona supera a verossimilhança da intriga e do personagem, característica do primeiro Bergman (no qual o itinerário simbólico sobrepunha-se ao itinerário diegético, um filme dentro do filme, como em Hitchcock). A "verdadeira" história, os "verdadeiros" personagens não são outra coisa que a ambiguidade com a qual Bergman os exprimiu: a forma ambígua é o verdadeiro tema do filme, assim como a forma afirmativa, como vimos, é o verdadeiro tema dos filmes do primeiro Bergman. Daí a banalidade dos questionamentos que citamos, se esses não chegam a incidir diretamente sobre a substância expressiva da obra mas limitam-se apenas a "esclarecê-la". Perguntar-se quem é Elisabeth, portanto, seguramente não deve resolver o enigma, saber quem é aquela Elisabeth ali, aquela que vemos sobre a tela, mas, se algo, significa multiplicar o enigma, tomar consciência da criatura metáfora que Bergman cimentou em Liv Ullmann. Persona é a ponta emersa de um iceberg que Bergman revela a nós enquanto ponta (cabe a nós deduzir a parte submersa); em Juventude, Sorrisos de uma noite de amor, O sétimo selo, essa ponta tinha a plena aparência de ser todo o iceberg.
Persona é uma metáfora da condição humana hoje. As suas raízes histórico-políticas são precisas, ainda que reduzidas a vestígios: o Vietnã, o nazismo. Estes dois fatos são apresentados através de dois meios de comunicação em massa, a televisão e a fotografia; portanto, já estão instrumentalizados: o budista que se imola é "imunizado" pela voz anônima do comentarista televisivo, que repele a vivacidade do evento para o limbo das notícias jornalísticas; a fotografia é aquela bem conhecida, às vezes aproveitada para provocar reações meramente emotivas, do menino judeu com as mãos erguidas na frente da SS. Mas, em ambos os casos, Bergman, servindo-se de dois "documentos", desnuda as suas raízes – são fatos nossos, do nosso tempo: um frio registro-do-registro no primeiro caso, decomposição e dinamização da fotografia no segundo e, acima de tudo, embate do documento com o indivíduo. Qual dos dois projeta-se no outro? A violência do nosso tempo é recuperada por documentos de sangue latejante – por ser "vista por" –, ou o indivíduo-vítima dessa violência vê-se forçado a um confronto que ele repele no momento em que é ferido por este? A relação é de ferimento mútuo; indivíduo e realidade externa estão ambos em jogo: indivíduo angustiado, desesperado, e realidade externa lacerada pela contradição, realidade social da opulência e do desperdício, da violência bélica e da dominação.
Mas, parece sugerir Bergman, essa relação não é mais um confronto, não poderia mais sê-lo dadas as condições existentes. O silêncio de Elisabeth Vogler é o vestígio de uma relação rejeitada com essa realidade, está na tela como uma interrogação provocativamente colocada ao espectador, do qual exige muitas respostas. As duas cenas de oposição direta – ainda que metaforicamente estilizada – entre indivíduo e realidade oferecem ao espectador justamente a possibilidade de re-trabalhar uma ligação rompida de causalidade; são os vestígios deixados por Bergman para solicitar a série de respostas.
As imagens "belas" de Persona, em particular as dos dois "encontros" entre Elisabeth e Alma, são a resposta que o filme dá aos "desencontros" ["embates"] entre Elisabeth e a realidade: são a alternativa harmônica à violência destes. O aspecto particular de Persona que nos interessa aqui é a dialética interna que se estabelece entre imagens autoritárias e imagens transcendentes. Estas estilhaçam o domínio daquelas, e dão a elas um novo valor. A intrusão "estranhante" da película arrebentando remete as imagens "de sonho" das relações entre as duas mulheres a uma ordem de realidade que é nossa, subtraem-lhe da tela – na qual poderiam ter se exaurido – e as insere no mesmo fluxo de pensamento solicitado pelas imagens transcendentes. O sonho da arte torna-se, essencialmente, hipótese de vida. Vejamos em detalhes como isso se dá.
A utopia que Bergman cimentou na nova ordem erótica que Elisabeth e Alma estabelecem na ilha, ao longo de um breve verão nórdico, é, na estrutura do filme, metáfora de uma realidade diversa, oposta à da violência dominante e ao racionalismo que a sustenta: um reino do Nirvana, onde o conflito da existência é momentaneamente suspenso numa paz absoluta17. A própria perversão da relação é uma provocação: é para o espectador o signo do abismo que separa a realidade da violência da realidade da verdadeira harmonia, quando é a primeira a que é dominante18. Desta forma, Persona coloca-se como filme autenticamente subversivo, testemunho lucidíssimo de uma ordem na qual o confronto direto entre indivíduo e realidade não tem mais sentido, sendo esta submetida ao domínio daquele; na qual o "silêncio" de quem, não podendo mais agir, limita-se dignamente a reagir, parece uma "máscara"19; na qual a única ação autêntica resulta condenada à utopia. Mas Bergman agarra-se a essa utopia20, incumbindo-se de fazê-la sair da ordem da tela e insinuando-a como o irracional que pode interromper o mecanismo racional no qual vivemos sem mais nos darmos conta. O "nada" que conclui as relações entre as duas mulheres não é apenas o sinal de um fim mas também de um início, de um re-nascimento, hipótese de uma ordem de realidade sem equivalência com a nossa.
Bergman, eu dizia, descola-se dessa harmonia, situa-a em relação à realidade na qual ainda vivemos, traçando os seus limites espaciais (a ilha), temporais (o breve verão nórdico21) e sociais (uma relação a dois, que exclui todos os outros22). Mas ele não contenta-se em fazer isso nos confrontos da diegese fílmica: deseja fazê-lo também nos confrontos com o espectador. Por isso, incide sobre os próprios meios de sua arte e, criticando a linguagem, opera a mais radical das críticas a uma realidade que impede que aquele sonho seja como ele deveria ser – realidade, justamente, e não sonho. Bergman, se por um lado libera as próprias utopias na imaginação artística – cuja força subversiva ele conhece (a arte como prefiguração do futuro) –, por outro, ele igualmente sabe que o preço pago por tal força subversiva é o irrealismo: tudo é permitido na arte, mas a arte não tem nada a ver com a vida: por mais livre que seja, ou justamente por isso, ela permanece um "sonho". É preciso destruir o feitiço (com isso, Bergman chega a uma das mais vivazes preocupações do cinema contemporâneo), remeter a arte à vida, reativar a circulação entre filme e espectador, para que este possa desfrutar dos fatos da obra como fatos da realidade. Em Persona é o "cinema no cinema" quem absolve, com essencial simplicidade, essa função estranhante. Para ser mais preciso, Bergman aproveita-se simultaneamente do poder de fascinação das imagens (a capacidade destas de fixarem o instante, de deterem a morte) e do seu desnudamento (a interrupção da projeção: a reativação do poder da morte). A defesa da utopia e a sua crítica refletem-se na convergência dos procedimentos estilísticos: em Persona, cinema de mise en scène e cinema sem mise en scène, imagens autoritárias e imagens transcendentes, afirmação e ambiguidade colidem. E, indubitavelmente, nessa dialética estilística Persona não é isento de ainda carregar consigo – mesmo que numa perspectiva diversa – certos vestígios do primeiro Bergman: o filme é produto do cinema de mise en scène, além de uma resposta (contestadora) a este mesmo cinema; ainda possui os signos da "obra de arte", não obstante a tentativa de romper, através do "cinema no cinema", a barreira entre arte e vida. Godard vai muito mais longe que Bergman nesse sentido, ainda que aparentemente (por meio das "citações") a sua ligação ao cinema do passado seja mais forte; e, talvez, um filme como Para não falar de todas essas mulheres também vá mais longe do que Persona. Mas aqui não me interessa tanto precisar o grau de "vanguardismo" de um determinado filme, quanto antes a sua colocação no interior do cinema contemporâneo, e as "variantes" a este cinema que o filme propõe. Em particular – e para concluir –, me interessa a tentativa que existe em Persona de precisar e, dentro de limites meditados, cimentar uma "promessa de felicidade" que supere, mesmo que arriscando a ilusão, a simples recusa do que está aí, e dos modos da comunicação existente; a hipótese, comum ao cinema mais avançado, de um pensamento positivo dentro da afirmação de um necessário e urgente pensamento negativo (do positivo que está dado).
– ADRIANO APRÀ
Immagine autoritaria e immagine trascendente foi originalmente publicado na Cinema & Film #3, verão de 1967.
Traduzido do Italiano por Gabriel Carvalho.
Traduzimos aqui e doravante a expressão “messa in scena” pelo seu análogo francês, do qual deriva. [N. do T.]
“Cinema schermico”, derivado de “schermo” (tela). “Cinema télico” soaria estranho demais em português, pelo qual optamos pela tradução “cinema da tela”, mas o caráter neologístico da expressão utilizada por Aprà reforça que trata-se de um conceito, não de uma mera descrição. [N. do T.]
Astanza: neologismo, conceito do crítico, teórico e conservador de arte italiano Cesare Brandi, desenvolvido nos livros Teoria del restauro [BR: Teoria da restauração] e Teoria generale della critica. Na falta de acesso às suas obras e de uma definição acessível do conceito, infelizmente, não pudemos elaborar o seu significado. [N. do T.]
Especifiquemos que esses autores – como os outros autores e filmes que serão citados, sempre de maneira lapidar – não devem ser tomados rigidamente, como casos "exemplares", manifestações "puras" de cinema autoritário ou transcendente. O que proponho como ponto focal da atenção crítica não é um esquema apriorístico, mas uma dicotomia que pode ter uma função válida apenas se de quando em quando for submetida a (ou sacrificada em nome de) obras, autores e situações históricas e culturais determinadas, como tentei fazer no caso de Bergman e Persona.
São interessantes, em relação a isso, as indicações oferecidas pelo artigo de Lawrence Alloway, "The iconography of the movies", em Movie #7, fevereiro-março 1963. Também pode ser de grande utilidade o prolongamento ao cinema – sugerido por Umberto Eco em sua fala na última mesa-redonda [do festival de cinema] de Pesaro – dos conceitos elaborados pela cinésica (em Italiano, pode-se ler um artigo do fundador dessa disciplina, Ray L. Birdwhistell: "Cinesica e comunicazione", in La comunicazione di massa, ed. La Nuova Italia). Ver, por fim (além das ideias expressas várias vezes por Pasolini sobre o "cinema como semiologia da realidade"), as afirmações feitas por A. K. Zolkovskij em seu artigo publicado neste nosso número [Cinema & Film #3] acerca da organização de um "vocabulário da realidade".
A ênfase que coloco sobre a imagem não significa que eu não me dê conta do fato de que exista uma estereotipia tanto para a imagem quanto para o som. Se neste artigo eu limito-me a tratar da primeira, isso deve-se, além de questões de extensão, pelo menos em parte à dificuldade de julgar nesse sentido os filmes dublados. Limito-me aqui a sublinhar, em relação ao assunto em questão, a função "redutiva" nos confrontos da ambiguidade da imagem que frequentemente assume o diálogo (explicativo, ou assim "utilizado" por boa parte da crítica), os ruídos (de tipo naturalístico) e a música (de temas estereotipados).
Conferir a posição crítica, assaz sintomática, de Jean Douchet, que por um certo período (mais ou menos de 1960 a 1962) representou a direção mais típica dos Cahiers du Cinéma.
Conceito da filosofia do imaginário de Sartre. [N. do T.]
Espero que esteja claro que isso não significa que o primeiro filme seja mais ou menos "belo" do que o segundo; apenas em relação ao sentido da discussão que aqui me interessa é que o primeiro filme me parece mais "moderno" do que o segundo. Em relação à posição de Eisenstein na oposição entre cinema de tela (tradicional, de mise en scène) e cinema sem mise en scène, refiro-me ao que já desenvolvi mais amplamente na introdução ao seu texto "Prospettive", in Rassegna Sovietica, janeiro-março de 1967, págs. 89-93).
Em 1933, Jakobson já era capaz de afirmar (ver "Decadenza del cinema?", na Cinema & Film #2 [usamos aqui a tradução em Português de Francisco Achcar, "Decadência do Cinema?", in Linguística, Poética, Cinema, Editora Perspectiva]): "Como reação à rotina ultra-refinada, à técnica de gosto decorativo, surge um consciente descuido, uma falta intencional de acabamento, o esboço como meio formal (L'âge d'or do genial Buñuel)." Mas apenas hoje a reação observada por Jakobson dá seus frutos de forma não-esporádica: a saturação do classicismo leva à reação de um cinema "grosseiro" como o de Rossellini (ou o de Buñuel: basta pensar nos filmes do seu período mexicano, e particularmente em Ensayo de un crimen).
Ver Christian Metz, "Le cinéma moderne et la narrativité", Cahiers du Cinéma #185: "Dizem-nos que a "sintaxe cinematográfica" não existe mais, que ela era boa para o mudo, que o cinema atual não sabe o que fazer com um tal fardo. Mas as articulações sintagmáticas [...] são como a prosa de Monsieur Jourdain: todo discurso obedece a elas, queira ele ou não, sob pena de tornar-se ininteligível [...] as novas formas de cinema, mais "flexíveis", obedecem igualmente às grandes figuras fundamentais sem as quais nenhuma informação seria possível" (pág. 56) [tradução nossa, do Francês].
Ver Herbert Marcuse, L'uomo a una dimensione, Editora Einaudi, pág. 192 [a tradução do trecho é nossa; o livro foi publicado no Brasil como O homem unidimensional]. A frase de Valéry é citada por Marcuse na página 191.
Marcuse, L'uomo a una dimensione, págs. 192 e 221. O termo transcendente designa, para Marcuse, "tendências teóricas e práticas que, numa dada sociedade, 'vão além' do universo constituído de discurso e de ação, em direção às alternativas históricas a este (as suas possibilidades reais)" (L'uomo a una dimensione, nota da página 9). Ver também, quanto à minha discussão, os capítulos III ("La conquista della coscienza infelice", especialmente as páginas 79-93) e IV ("La chiusura dell'universo di discorso", especialmente as páginas 103-121). Particularmente interessante é a seguinte afirmação: "os conceitos filosóficos continuam em antagonismo com o reino do discurso comum, já que continuam a incluir conteúdos que não são realizáveis na palavra falada, no comportamento manifesto, nas condições e disposições observáveis ou nas propensões prevalentes. O universo filosófico continua assim a conter 'fantasmas', 'ficções' e 'ilusões' que podem ser mais racionais que a sua negação, na medida em que são conceitos que reconhecem os limites e as armadilhas da racionalidade prevalente. Estes exprimem a experiência que Wittgenstein rejeita – ou seja, que 'contrariamente às nossas ideias pré-concebidas, é possível pensar 'isso e aquilo' – o que quer que isso signifique' " (páginas 198-199). As afirmações feitas por Marcuse referem-se à palavra, não à imagem (menos ainda à imagem cinematográfica). Há portanto uma boa dose de arbitrariedade e de instrumentalização no meu modo de servir-me delas; não obstante, considero útil, mesmo sob o risco de parcialidade e de erros, prolongar a sua aplicação para tentar precisar os horizontes dentro dos quais move-se, ou deveria mover-se, o "novo" cinema. Por outro lado, não nos esqueçamos dos elementos da "tradição" que o novo cinema frequentemente, até mesmo de forma útil, arrasta consigo, ou as novas formas de "autoridade", as novas "retóricas" às quais ele pode dar vida. Dividir o cinema entre autoritário e transcendente tem um valor provocativo, serve para discernir direções possíveis de cinema, que porém manifestam-se concretamente (nos filmes, nos autores) num nexo do qual são muito menos facilmente extricáveis do que pode parecer pela minha discussão.
Quanto a isso, várias declarações de Bergman são reveladoras. Por exemplo, Otto Preminger poderia facilmente concordar com o que está dito em "Chacun de mes films est le dernier" (Cahiers du Cinéma #100, outubro 1959), mas dificilmente o Bergman de Para não falar de todas essas mulheres ou de Persona. Alguns exemplos: "Quando vamos ao cinema, sabemos perfeitamente que uma ilusão nos aguarda ali, nos deixamos ser levados e a aceitamos. O desenrolar das imagens age diretamente sobre a nossa sensibilidade, sem afetar o nosso intelecto. [...] Para dar o maior peso possível à interpretação do ator, os movimentos de câmera devem ser pouco complicados, livres de qualquer restrição e perfeitamente sincronizados com a ação. A câmera deve ser apenas um observador imparcial, e não tem o direito de participar da ação a não ser em raras ocasiões. [...] O ator deve identificar-se incondicionalmente com o seu papel [...] Uma análise intelectual pouco beneficia o ator [...] Essa forma de agir evoca um pouco a feitiçaria, mas não tem nada a ver; é apenas um método seguro e testado para o diretor controlar o ator." Em "Fare dei film è per me una necessità di natura", Cineforum #45, maio de 1965, lemos: "Fazendo um filme, torno-me culpado de um truque, sirvo-me de um aparelho graças ao qual transporto o meu público, como que através de um pêndulo, de um sentimento ao sentimento oposto: faço-o rir, gritar de susto, sorrir, crer em lendas, indignar-se, ofender-se, entusiasmar-se, transformo ele numa turba raivosa ou faço-o bocejar de tédio. Sou, portanto, um trapaceiro, ou então – caso o público esteja consciente do truque – um ilusionista. Eu dou risada, e tenho à minha disposição o mais surpreendente aparelho mágico que já existiu em toda a história do mundo, nas mãos de um prestidigitador." Mas, inversamente, parece ser uma outra pessoa quem escreve: "Sinto que a arte (e não apenas a arte cinematográfica) é insignificante [...] Se hoje eu considero a extensão dessa desolação e, apesar de tudo, obstino-me em proclamar que desejo prosseguir no exercício da minha arte, a razão é muito simples [...] Essa razão chama-se curiosidade. [...] Sinto como se, após ficar detido por muito tempo, eu bruscamente saísse de uma prisão e mergulhasse nessa vida tonitruante, agitada, barulhenta. Fui pego por uma curiosidade desenfreada. Eu noto, observo, abro o olho, tudo é irreal, fantástico, aterrorizante ou ridículo." (in "La peau du serpent (Présentation de Persona)", Cahiers du Cinéma #188, março de 1967). A concepção que o primeiro Bergman tem do cinema, e do público, não tem como não nos fazer lembrar de dois mestres tão diversos do cinema da tela como são Hitchcock e Eisenstein. O primeiro declara querer, em seus filmes, "dirigir completamente os pensamentos do espectador"; "com Psicose, eu dirigi os espectadores pra valer, exatamente como se tocasse um órgão" (in Le cinéma selon Hitchcock, de François Truffaut, Éditions Robert Laffont, págs. 208-209). O segundo – seguramente com outras intenções, mas o princípio estilístico é análogo – afirma que o diretor deve ter "o temperamento de um orador, que cativa vocês por completo. E tudo ao seu redor, no círculo de aço, palpita uma respiração repentinamente tornada rítmica, o público todo eletrizado. Um público repentinamente tornado... circo, hipódromo, comício. Arena de um salto coletivo, um único interesse fremente." ("Prospettive", in Rassegna Sovietica, janeiro-março de 1967).
Por ser idêntica, ao menos na cópia italiana, à de Tristan.
Ver "Nana ou les deux espaces", de Noël Burch, in Cahiers du Cinéma #189.
As analogias entre os dois filmes são ainda mais estreitas. No que diz respeito aos "temas", por exemplo: o do "duplo" é antecipado pela relação Felix-Tristan, um é a máscara do outro (mas qual é "um" e qual é "outro"?); o do erotismo "total", livre de repressões, como forma utopística de auto-realização, já está todo no universo – "ausente" – de amor e de arte no qual vive Felix. Até um elemento secundário, como a presença ambígua das estátuas, procedimento estilístico que parece sugerir uma inversão da relação entre ator e fundo (a conversa entre Cornelius e Chimera se dá sobre o fundo da estátua, ou é essa conversa que serve de fundo à presença interrogativa da estátua? são mais eloquentes Cornelius e Adelaide ou os bustos sangrentos de Felix?), faz pensar, retrospectivamente, na inserção do trecho documental sobre o Vietnã ou na fotografia do menino judeu em Persona (analogamente, os "objetos" intervêm vivamente sobre o "sujeito", e não se sabe mais qual é o verdadeiro sujeito e qual é o verdadeiro objeto).
Diz Simone de Beauvoir: "Na solidão, ela [a mulher] não consegue realmente desdobrar-se [...] É somente quando seus próprios dedos modelam o corpo de uma mulher cujos dedos modelam o seu, que o milagre do espelho se realiza. Entre o homem e a mulher o amor é um ato; cada um arrancado a si torna-se outro [...] Entre mulheres, o amor é contemplação: as carícias são menos destinadas a se apropriar do outro do que a recriar-se lentamente através dele; a separação está abolida, não há nem luta, nem vitória, nem derrota; dentro de uma exata reciprocidade cada qual é ao mesmo tempo sujeito e objeto, a soberana e a escrava; a dualidade é cumplicidade."; e ainda: "Em todo amor — amor sexual ou amor materno — há, ao mesmo tempo, avareza e generosidade, desejo de possuir o outro e de tudo lhe dar; mas é na medida em que ambas são narcisistas, acariciando na filha, na amante, seu prolongamento ou seu reflexo, que a mãe e a lésbica se encontram singularmente." O Segundo Sexo vol. 2 – A Experiência Vivida, tradução de Sérgio Milliet. São Paulo, Difusão Europeia do Livro, 2ª edição, págs. 156-157. De resto, Elisabeth também é para Alma uma "mãe", que escuta pacientemente a sua "filha" (ver a cena da confissão noturna; a cena seguinte é a sua consequência lógica: a filha confortada entre os braços da mãe, mas também a oposição de uma harmonia homossexual à violência heterossexual evocada anteriormente).
"As imagens órfico-narcisistas são as da Grande Recusa: recusa em aceitar a separação do objeto (ou sujeito) libidinal. A recusa visa à libertação – à reunião do que ficou separado."; "A tradição clássica associa Orfeu à introdução da homossexualidade. Tal como Narciso, êle rejeita o Eros normal, não por um ideal ascético, mas por um Eros mais pleno. Tal como Narciso, protesta contra a ordem repressiva da sexualidade procriadora. O Eros órfico e narcisista é, fundamentalmente, a negação dessa ordem – a Grande Recusa. No mundo simbolizado pelo herói-cultural Prometeu trata-se da negação de toda a ordem; mas nessa negação Orfeu e Narciso revelam uma nova realidade, com uma ordem própria, governada por diferentes princípios. O Eros órfico transforma o ser; domina a crueldade e a morte através da libertação. A sua linguagem é a canção e a sua existência é a contemplação." Herbert Marcuse, Eros e Civilização, tradução de Álvaro Cabral. Rio de Janeiro, Editora Zahar, 6ª edição, págs. 154-155.
Não é o caso, dados os limites que estabeleci a mim mesmo, de enfrentar esse problema neste artigo. Aqui, basta sublinhar as referências a outros filmes seus que Bergman nos autoriza através dos nomes: Elisabeth Vogler repete o sobrenome do Doutor Vogler de O rosto; "Persona" remete ao Jonas Persson (Max Von Sidow) de Luz de Inverno. Este último, em particular, pode ser considerado um autêntico predecessor de Elisabeth, de quem repete algumas das mesmas constantes, mas radicalizando-as: de fato, ele, perante uma realidade grande demais para ser compreendida pelo indivíduo (simbolizada, nesse filme, pela bomba atômica chinesa), fecha-se num silêncio que o leva ao suicídio.
O mito do erotismo "pervertido" como forma utopística de harmonia e de denúncia da violência existente pode ser reencontrado num filme pouco conhecido mas muito belo: Lilith, de Robert Rossen. Um outro filme que pode utilmente ser visto na mesma perspectiva é Le Bonheur de Agnès Varda. E em Godard, a violência do mundo moderno é frequentemente contraposta à harmonia do mundo clássico ou, melhor dizendo, de um utopístico e futurístico mundo clássico ("la mer allée avec le soleil" [citação de Rimbaud em Pierrot le Fou, "o mar que vai junto do sol"]); mas tal harmonia é observada apenas no fim de algumas de suas obras – Le Mépris, Bande à part, Pierrot le Fou –, e não realizada dentro da obra, como em Bergman.
Em Bergman, há uma verdadeira obsessão pelo tempo: em seus filmes sempre reaparece o fim do verão, o tempo escorrendo que destrói a harmonia das alegres estações, da era de ouro; assim, em Juventude, em Monika, o instante (o próprio símbolo do cinema de Bergman, segundo Godard: ver "Bergmanorama", em Cahiers du Cinéma nº 85) dissolve-se, degrada-se para sempre. "...as imagens órfica e narcisista simbolizam a rebelião contra o transitório, o esforço desesperado para sustar o fluir do tempo – a natureza conservadora do princípio de prazer. Se o 'estado estético' se destina a ser, realmente, o estado de liberdade, então terá de derrotar, em última instância, o curso destrutivo do tempo." Marcuse, Eros e civilização, pág. 170.
Em Persona, o Eros narcisístico-homossexual gera definitivamente a morte ("silêncio", "nada"), e não a vida, porque é obra de indivíduos isolados: é fuga da realidade constituída (e hipótese utopística de uma possível e nova realidade), e não construção dessa nova realidade: é a prova do desejo de harmonia e não a harmonia realizada (a não ser no instante). Diz Marcuse: "O Eros órfico e narcisista absorve a realidade nas relações libidinais que transformam o indivíduo e seu meio; mas essa transformação é o cometimento isolado de indivíduos ímpares e, como tal, gera morte. Mesmo que a sublimação não proceda contra os instintos, mas como sua afirmação, deve ser um processo supra-individual num terreno comum. Como um fenômeno isolado e individual, a reativação da libido narcisista não é geradora de cultura, mas neurótica [...] A libido só pode tomar a estrada da auto-sublimação como um fenômeno social: como uma força irreprimida, só pode promover a formação de cultura sob condições que relacionam mutuamente os indivíduos associados na cultivação do meio para fazerem frente a suas crescentes necessidades e empregarem suas crescentes faculdades." Eros e Civilização, pág. 183.