Carta a uma professora
da Escola de Barbiana
org. de Don Lorenzo Milani
Libreria Editrice Fiorentina, 1967.
Testo completo in Italiano
Full text in English, with an enlightening introduction
Este livro não foi escrito para os professores, mas para pais e mães. É um convite à mobilização.
À primeira vista parece ter sido escrito por um único garoto. Na verdade nós, os autores, somos oito garotos da Escola de Barbiana.
Outros colegas nossos, que trabalham, nos ajudaram aos domingos.
Agradecemos em primeiro lugar ao nosso Padre, que nos educou, nos ensinou as regras da arte da escrita e guiou os trabalhos.
Em segundo lugar, a tantos amigos que colaboraram de outras formas:
Aos vários pais e mães, pela simplificação do texto.
Aos vários secretários, professores, diretores, reitores, funcionários do Ministério e do ISTAT (Instituto Nacional de Estatística) e padres pela coleta dos dados estatísticos.
Aos sindicalistas, jornalistas, administradores municipais, historiadores, estatísticos e juristas por outros fatos importantes.
Primeira Parte:
A ESCOLA OBRIGATÓRIA NÃO PODE REPETIR DE ANO.
Cara professora,
de mim a Sra. não deve se lembrar nem do nome. Reprovou tantos.
Eu, pelo contrário, já pensei muitas vezes na Sra., nos seus colegas, naquela instituição que vocês chamam de escola, nos garotos que vocês "reprovam".
Nos reprovam para os campos e para as fábricas e nos esquecem.
a timidez
Dois anos atrás, no primeiro ano da escola normal, a Sra. me intimidava.
A timidez, aliás, acompanhou-me por toda a vida. Quando eu era pequeno não tirava os olhos do chão. Me esgueirava pelas paredes para não ser visto.
Inicialmente eu pensava que era uma doença minha ou no máximo da minha família. A mãe é daquelas que ficam intimidadas pelo formulário de enviar telegramas. O pai observa e escuta, mas fica calado.
Mais tarde, passei a achar que a timidez era coisa da gente das montanhas. Os camponeses da planície me pareciam mais seguros de si. Os operários, nem se fala.
Agora sei que os operários deixam todos os cargos de responsabilidade do partido e todas as cadeiras do parlamento para os filhinhos de papai.
Logo, eles são como nós. E a timidez dos pobres é um mistério mais antigo. Eu, que estou inserido nela, não saberia explicá-lo. Talvez não seja nem ruindade nem heroísmo. É só falta de prepotência.
A gente das montanhas
a turma mista
Na elementare, o Estado me ofereceu uma escola de segunda categoria. Cinco turmas numa sala só. Um quinto da escola à qual eu tinha direito.
É o sistema que adotaram na América para criar as diferenças entre os brancos e os negros. Escola pior para os pobres, desde criancinha.
o ensino obrigatório
Terminando a elementare, eu tinha direito a mais três anos de escola. Mais que isso, a Constituição dizia que eu tinha a obrigação de estudar. Mas em Vicchio ainda não havia a scuola media. Ir até Borgo era um investimento. Os que tentaram acabaram gastando uma grana e foram reprovados como cães.
A professora disse aos meus pais que não desperdiçassem dinheiro: "Mandem ele para o campo. Não é apto para os estudos".
O pai não respondeu a ela. Por dentro, pensava: "Se ele morasse em Barbiana, seria apto".
Barbiana
Em Barbiana, todas as crianças iam para a escola com o padre. De manhãzinha até quase escurecer, no verão e no inverno. Ninguém era "negado aos estudos".
Mas nós éramos de um outro vilarejo, longe. O pai estava quase desistindo. Depois ficou sabendo que tinha um garoto de S. Martino que também ia para lá. Tomou coragem e foi saber mais.
o bosque
Quando voltou, vi que ele tinha comprado para mim uma lanterna para a noite, um pote para a sopa e uma galocha para a neve.
No primeiro dia ele me acompanhou. Levou duas horas pois tínhamos de abrir caminho com facão e foice. Depois eu aprendi a percorrê-lo em pouco mais de uma hora.
Eu passava perto só de duas casas. Com os vidros quebrados, abandonadas havia pouco tempo. Às vezes eu saía correndo por causa de uma cobra ou de um maluco que vivia sozinho na Rocca e gritava para mim de longe.
Eu tinha onze anos. A Sra. morreria de medo. Viu? Cada um tem a sua timidez. Estamos quites, portanto.
Mas só se cada um fica na sua casa. Ou se a Sra. tivesse que vir até nós para aplicar as provas. Mas a Sra. não precisa fazer isso.
as mesas
Quando eu cheguei lá, Barbiana não parecia uma escola. Nem mesa para o professor, nem quadro-negro na parede, nem aqueles bancos compridos. Só umas mesas grandes ao redor das quais fazíamos as aulas e comíamos.
Havia só um exemplar de cada livro. Os garotos amontoavam-se uns em cima dos outros. Era difícil perceber que um deles era um pouco mais velho e ensinava.
O mais velho daqueles professores tinha dezesseis anos. O mais novo, doze, e eu ficava admirado. Desde o primeiro dia decidi que eu também ia ensinar.
o preferido
Lá a vida também era dura. Disciplina e confusões que tiravam a vontade de voltar.
Mas quem não tinha a base, era lerdo ou desinteressado sentia-se preferido. Era acolhido como vocês acolhem o primeiro da turma. Parecia que toda a escola era feita só para ele. Enquanto ele não entendesse, os outros não seguiam adiante.
o recreio
Não tinha recreio. Não era férias e nem domingo.
Nenhum de nós se incomodava muito com isso porque trabalhar é pior. Mas todo burguês que vinha nos visitar ficava indignado.
Um professor metido disse: "Padre, o Sr. não estudou pedagogia. Polianski diz que para o jovem o esporte é uma necessidade psicofisio..."1
Falava sem olhar para nós. Quem ensina pedagogia na Universidade não precisa olhar para os garotos. Sabe tudo de cor, igual nós sabemos a tabuada.
Finalmente foi embora, e o Lucio, que tinha 36 cabeças de gado no curral, disse: "A escola sempre vai ser melhor do que bosta de vaca".
os camponeses no mundo
Essa frase deveria ser esculpida na porta das suas escolas. Milhões de garotos camponeses estariam de acordo.
Quem diz que os garotos odeiam a escola e adoram brincar são vocês. Vocês não perguntaram isso para nós, camponeses. Mas há um bilhão e novecentos milhões de nós2. Seis de cada dez garotos pensam exatamente como Lucio. Os outros quatro, não sabemos.
A cultura de vocês é toda construída assim. Como se vocês fossem o mundo todo.
professores crianças
No ano seguinte virei professor. Quer dizer, eu era professor três meio-períodos da semana. Ensinava geografia, matemática e Francês para o primeiro ano da scuola media.
Ninguém precisa de um diploma para folhear um atlas e explicar frações.
Se eu errava alguma coisa, não era um grande problema. Era um alívio para os garotos. Descobríamos juntos. As horas passavam tranquilamente, sem medo e sem submissão. A Sra. não sabe dar aula como eu.
política ou mesquinhez
E eu aprendia tanta coisa ensinando.
Aprendi por exemplo que o problema dos outros é igual ao meu. Sair dessa juntos, é isso a política. Sair dessa sozinho é mesquinhez.
Eu não tinha sido vacinado contra a mesquinhez, de forma alguma. Na época de provas eu queria era mandar os mais novos todos para o inferno e estudar sozinho. Eu era igual aos garotos de vocês, mas ali eu não podia confessar isso nem aos outros e nem a mim mesmo. Eu tinha que ser generoso mesmo quando não o era.
Isso não vai parecer muita coisa para vocês. Mas com os seus alunos vocês não fazem nem isso. Não exigem nada deles. Os estimulam só a seguir a frente e não olhar para trás.
As crianças da cidade
deformados
Depois que instituiram a scuola media em Vicchio, começaram a aparecer em Barbiana até mesmo jovens da cidade. Todos reprovados, naturalmente.
Aparentemente, o problema da timidez não existia para eles. Mas eram deformados de outros modos.
Por exemplo, eles achavam que brincadeiras e férias eram um direito, que a escola era um sacrifício. Nunca tinham ouvido dizer que a escola serve para aprender, e que ela é um privilégio.
Para eles, o professor era parte do exército inimigo, e tinham que enganá-lo. Tentavam até colar. Levou um tempo até entenderem que ali não tinha boletim.
o galo
Quanto ao sexo, os mesmos ardis. Achavam que só podiam falar disso às escondidas. Se viam um galo montando em cima de uma galinha, cutucavam-se com os cotovelos como se fosse um adultério.
Mas no início, essa era a única matéria que interessava a eles. Tínhamos um livro de anatomia3. Ficavam entocados num canto olhando as imagens. Duas páginas em particular ficaram completamente gastas.
Mais tarde, descobriram que as outras páginas também eram bonitas. Depois descobriram que a história também é bela.
Alguns não pararam mais. Agora, interessam-se por tudo. Dão aulas aos mais novos, tornaram-se como nós.
Outros, pelo contrário, vocês conseguiram travar de novo.
as meninas
Não vinha nenhuma menina da cidade. Talvez fosse a dificuldade do caminho. Talvez fosse a mentalidade dos pais. Acham que uma mulher pode viver mesmo com o cérebro de uma galinha. Os homens não exigem que ela seja inteligente.
Isso também é um tipo de racismo. Mas quanto a isso, não temos nada contra vocês. Vocês gostam das meninas mais do que os pais delas.4
Sandro e Gianni
Sandro tinha 15 anos. Um metro e setenta, humilhado, adulto. Os professores achavam que ele era um idiota. Queriam que ele repetisse o primeiro ano da media pela terceira vez.
Gianni tinha 14 anos. Distraído, alérgico à leitura. Os professores o condenaram como sendo um delinquente. Não estavam completamente enganados, mas não era motivo para se livrarem dele.
Nem um nem outro tinha a intenção de repetir de ano. A única opção era ir trabalhar. Só vieram conosco porque nós ignoramos as suas reprovações e colocamos cada um na turma justa para a sua idade.
Colocamos Sandro no terceiro e Gianni no segundo ano da media. Foi a primeira alegria escolar de suas pobres vidas. Sandro vai se lembrar disso para sempre. Gianni lembra-se disso dia sim, dia não.
A Pequena Vendedora de Fósforos
A segunda alegria foi finalmente uma mudança no programa.
Vocês queriam que ele seguisse firme na busca da perfeição. Uma perfeição absurda, porque o garoto escuta as mesmas coisas até não aguentar mais e enquanto isso, cresce. As coisas permanecem iguais, mas ele muda. Nas suas mãos, tornam-se coisas infantis.
Por exemplo, no primeiro ano vocês teriam lido A Pequena Vendedora de Fósforos e La neve fiocca fiocca fiocca para ele pela segunda ou terceira vez.5 Em vez disso, no segundo e no terceiro ano vocês lêem coisas escritas para adultos.
Gianni não sabia colocar o "h" no verbo haver. Mas sabia tanta coisa do mundo dos adultos. Do trabalho, da família, da vida na cidade. Algumas noites, ele ia com o pai nas reuniões dos comunistas ou do Conselho Municipal.
Com os gregos e romanos, vocês fizeram ele odiar toda a história. Nós, com a última guerra, deixamos ele sem fôlego por quatro horas seguidas.
Em Geografia, vocês teriam ensinado a ele a da Itália, mais uma vez. Ele teria largado a escola sem ter ouvido nem uma menção a todo o resto do mundo. Teriam feito um grande mal a ele. Mesmo que fosse só para ler o jornal.
você não sabe se exprimir
Em pouco tempo, Sandro ficou apaixonado por tudo. De manhã acompanhava o programa do terceiro ano. Ia anotando o que não sabia e à tarde mergulhava nos livros do segundo e do primeiro. Em junho, o "idiota" fez as suas provas e vocês tiveram que aprová-lo.
Gianni foi mais difícil. Ele saiu analfabeto da escola de vocês, e com ódio dos livros.
Fizemos malabarismos com ele. Não digo que conseguimos fazer ele se apaixonar por tudo, mas pelo menos por algumas matérias. Nós precisávamos apenas que vocês passassem ele para o terceiro ano e enchessem ele de elogios. Depois disso, daríamos conta de fazer com que ele se apaixonasse pelo resto.
Mas na prova oral uma professora disse a ele: "Por que você vai a uma escola particular? Não vê que você não sabe se exprimir?" "......"6
Eu também sei que o Gianni não sabe se exprimir.
Todos nós estamos prontos a admitir a nossa culpa nisso. Mas vocês primeiro, que expulsaram ele da escola um ano antes.
Belo remédio o de vocês.
sem distinção de língua
De resto, teríamos que chegar a um acordo quanto ao que é a língua correta. Os pobres criam as línguas, e depois as reinventam ao infinito. Os ricos cristalizam a língua para caçoar, ou reprovar, quem não fala como eles.
Vocês dizem que o Joãozinho, o filho do médico, escreve bem. É claro, ele fala igual a vocês. Faz parte do clube.
Em vez disso, a língua que o Gianni fala e escreve é a do seu pai. Quando o Gianni era pequeno, ele chamava o rádio de lá-lá. E o seu pai, sério: "Não é lá-lá, se diz urrádio".
Ora, se é possível, tudo bem que o Gianni aprenda a dizer "rádio" também. A língua de vocês pode ser útil a ele. Mas até lá, vocês não podem expulsar ele da escola.
"Todos os cidadão são iguais sem distinção de língua". A Constituição disse isso pensando nele.7
marionete obediente
Mas vocês honram mais a gramática que a Constituição. E o Gianni não voltou mais, nem para nós.
E isso não pára de nos atormentar. Acompanhamos ele, de longe. Descobrimos que não vai mais à Igreja, nem à reunião de nenhum partido. Vai à fábrica e varre o chão. Nas horas livres, segue a moda como uma marionete obediente. No sábado sai para dançar, no domingo vai ao estádio.
Vocês não sabem nem que ele existe.
o hospital
O nosso primeiro encontro com vocês foi assim. Através dos garotos que vocês não queriam.
Reparamos, nós também, que com eles a escola fica mais difícil. Ás vezes vem a tentação de se livrar deles. Mas se a escola perde eles, deixa de ser escola. É um hospital que cura os saudáveis e expulsa os doentes. Vira um instrumento de diferenciação cada vez mais irremediável.
E vocês, querem contribuir com isso? Então chamem eles de volta, insistam, recomecem do tudo do zero até o infinito, mesmo que pareça uma loucura.
Melhor parecer louco do que ser instrumento de racismo.
As provas
as regras da escrita
Em junho do meu terceiro ano em Barbiana, eu me apresentei para o exame de conclusão da scuola media, como aluno oriundo de escola particular.
O tema era: "Falam os vagões ferroviários"
Em Barbiana eu tinha aprendido que as regras da boa escrita são: ter algo importante a dizer, e que seja útil a todos ou a muitos. Saber para quem se escreve. Recolher todas as informações que podem ser úteis. Encontrar uma lógica segundo a qual ordená-las. Eliminar cada palavra que não serve. Eliminar cada palavra que não usamos na fala. Não impor-se limites de tempo.
É dessa forma que escrevo esta carta junto dos meus colegas. Assim espero que escrevam meus alunos quando eu me tornar professor.
a faca em suas mãos
Mas com um tema desses, o que eu podia fazer com as regras humildes e razoáveis da escrita de sempre? Se eu quisesse ser honesto, deveria deixar a página em branco. Ou então criticar o tema que me tinham dado.
Mas eu tinha quatorze anos e vinha das montanhas. Para frequentar a magistrale precisava do diploma. Aquele pedaço de papel estava nas mãos de cinco ou seis pessoas estranhas à minha vida e a quase tudo o que eu amava e conhecia. Gente desatenta e com a faca apontada para mim.
Então eu tentei escrever do jeito que vocês gostam. Tenho certeza que não me saí muito bem. Seguramente pareceram melhores os textos dos seus jovenzinhos especialistas em não dizer nada e cuspir lugares-comuns.
o complexo da pegadinha
O exame de Francês era um concentrado de exceções.
As provas deveriam ser abolidas. Mas, se vocês têm que aplicar elas, pelo menos sejam honestos. As coisas difíceis devem aparecer na mesma proporção que na vida real. Se aparecem demais, é porque vocês têm mania de pegadinha. Como se estivessem em guerra contra os alunos.
Por que vocês fazem isso? Pelo bem deles?
corujas, pedrinhas e leques
Não é pelo bem deles. Foi aprovado com nota nove um garoto que na França não saberia nem perguntar onde é o banheiro.
Só sabia perguntar por corujas, pedrinhas e leques, no plural e no singular.8 Sabia no máximo duzentos vocábulos escolhidos justamente por serem exceções, e não por serem frequentes.
O resultado é que odiava o Francês tanto quanto se pode odiar a matemática.
o fim
Eu aprendi as línguas com os discos. Sem nem me dar conta, aprendi primeiro as coisas mais úteis e mais frequentes. Exatamente como se aprende o Italiano.
Eu passei aquele verão em Grenoble, lavando pratos num restaurante. Logo me senti em casa. Nos albergues, me comunicava com jovens da Europa e da África.9
Voltei decidido a aprender línguas a todo vapor. Antes muitas línguas mal do que uma bem. Poder me comunicar com todos, conhecer homens e problemas novos, rir das sagradas fronteiras que separam as nações.
os meios
Nos três anos da media nós tínhamos estudado duas línguas em vez de uma: o Francês e o Inglês. Tínhamos vocabulário o suficiente para entender quase qualquer assunto.
Não nos preocupávamos muito com os erros de gramática. Mas a gramática praticamente só aparece na escrita. Dá para ler e falar sem ela. Depois, pouco a pouco se vai pegando de ouvido. Quem quiser, pode estudá-la mais à frente.
Até porque é assim que se faz com a nossa língua. Temos as primeiras aulas de gramática quando já estamos falando há oito anos. Três anos depois de termos aprendido a ler e a escrever.
Nos novos currículos, para vocês também recomendam os discos. Mas os discos funcionam numa escola a tempo integral, na qual se aprende uma língua por distração, nos momentos de cansaço. Duas horas por dia, sete dias por semana. Não três horas por semana, como vocês fazem.
Nessas condições, é melhor não adotar os discos.
os castelos do Loire
Nas provas orais, houve uma surpresa. Os seus meninos pareciam poços de cultura francesa. Por exemplo, falavam com confiança dos castelos do Loire.10
Depois descobriu-se que tinham estudado só isso o ano todo. No currículo também haviam algumas canções, e eles sabiam ler e traduzir elas.
Se um inspetor estivesse ali, eles teriam causado uma impressão melhor do que nós. O inspetor não sai do currículo. E mesmo assim vocês e ele sabem que aquele Francês não tem como servir para nada. Então por que vocês o ensinam? Vocês, por causa do inspetor. Ele, por causa do superintendente. E ele por causa do ministro.
É a característica mais desconcertante da escola de vocês: ela existe para si mesma.
arrivistas aos 12 anos
O fim dos seus alunos também é um mistério. Talvez não exista, talvez seja vulgar.
Dia após dia estudam, pelas notas, pelo boletim, pelo diploma. E, enquanto isso, vão se distraindo das coisas belas que estudam. Línguas, história, ciências, tudo vira ar, nada mais.
Por trás daquelas folhas de papel há apenas um interesse individual. Um diploma quer dizer grana. Nenhum de vocês diz isso. Mas se espremerem bem, o suco é esse.
Para estudar com empenho na escola de vocês, o aluno com 12 anos de idade já teria que ser um arrivista.
Aos 12 anos, os arrivistas são poucos. Tanto que a maioria dos seus alunos odeia a escola. O convite vulgar de vocês não merecia outra resposta.
o Inglês
Na sala ao lado tinha uma turma de Inglês. Mais iludidos do que nunca.
Eu também sei que o Inglês é mais útil. Se você aprende. Não se você só começa a aprender, como vocês fazem. Além de corujas e pedrinhas. Não sabiam nem dizer boa tarde. Desencorajados para sempre.
A primeira língua estrangeira é um acontecimento na vida de um garoto. Tem que ser um sucesso, senão já era.
Vimos que, na prática, só dava certo com o Francês. Toda vez que aparecia um estrangeiro falando Francês, algum garoto descobria a maravilha que é entender. Na mesma noite ele pegava um disco de uma terceira língua.
O mais importante ele já tinha: a vontade, a certeza de que é possível, a mente já encaminhada para os problemas linguísticos.
matemática e sadismo
Um problema de geometria fazia pensar numa escultura da Bienal: "um sólido é formado por uma semiesfera sobreposta a um cilindro cuja superfície corresponde a três sétimos daquela...".
Não existe um instrumento que meça superfícies. Portanto, na vida real nunca pode acontecer de você saber a superfície e não as dimensões. Um problema assim só pode nascer de uma mente doentia.
novos rótulos
Na nova media essas coisas não vão acontecer mais. Os problemas vão partir "de considerações de caráter concreto".
Realmente, nos exames deste ano, a Carla enfrentou um problema moderno baseado em caldeiras: "Uma caldeira com a forma de uma semiesfera sobreposta...". E mais uma vez, partem das superfícies.
Melhor um professor à moda antiga do que um que acha que é moderno só porque trocou os rótulos.
uma turma de idiotas
O que aplicou o exame para nós era à moda antiga. Aliás, nenhum dos seus alunos tinha conseguido resolver o problema. Dos nossos, dois de quatro se safaram. Resultado: vinte e seis reprovados de vinte e oito.
Ele dizia por aí que tinha uma turma de idiotas!
o sindicato dos pais
Quem era responsável por impedi-lo?
O diretor, ou o conselho de professores. Não o fizeram.
Os pais poderiam fazê-lo. Mas enquanto vocês tiverem a faca na mão, os pais vão ficar calados. Então ou arrancamos de vocês todas as facas (notas, boletins, exames) ou os pais se mobilizam.
Um belo sindicato de pais e mães capaz de lembrar a vocês que somos nós quem pagamos os seus salários, e pagamos para que vocês nos sirvam, e não para que nos mandem para a rua.
No fundo, seria para o bem de vocês. Os que não recebem críticas envelhecem mal. Desacostumam-se da progressão da história viva. Tornam-se as pobres criaturas que vocês são.
o jornal
A história desse último meio século era a que sabíamos melhor. Revolução russa, fascismo, guerra, resistência, libertação da África e da Ásia. É a história na qual viveram o vô e o pai.
E eu sabia bem a história em que vivo. Isto é, o jornal, que em Barbiana líamos todos os dias, em voz alta, de cabo a rabo.
Em época de provas, gastar duas horas da escola lendo o jornal acaba com a mesquinhez de qualquer um. Porque não tem nada no jornal que sirva à prova de vocês. É mais uma evidência de que há pouca coisa na escola de vocês que sirva à vida.
Justamente por isso deve-se ler o jornal. É como gritar na cara de vocês que a sua aprovação nojenta não nos transformou em animais. Desejamo-la só por causa dos nossos pais. Mas a política e as atualidades, isto é, o sofrimento alheio, valem mais do que vocês e do que nós mesmos.
a Constituição
Aquela professora tinha parado na primeira guerra mundial. Exatamente no ponto em que a escola poderia reconectar-nos à vida. E durante todo o ano nunca leu um jornal em aula.
Ainda deve ter as placas fascistas de "Aqui não se fala de política" penduradas nos olhos.
Uma vez, a mãe do Giampiero disse a ela: "Tenho a impressão de que desde que o garoto passou a frequentar as atividades extracurriculares melhorou muito. De noite, ele fica lendo em casa". "Lendo? Sabe o que ele lê? A CONSTITUIÇÃO! Ano passado só pensava nas garotas, este ano é na Constituição".
Aquela pobre mulher pensou que fosse um livro sujo. À noite, quis que o pai desse uma surra no Giampiero.
o Monti
Aquela mesma professora, nas aulas de Italiano, queria que lêssemos a qualquer custo as estranhas histórias de Homero. Antes fosse Homero. Era Monti.11
Em Barbiana ninguém lia isso. Só uma vez, de brincadeira, contamos todas as palavras de um canto. Cento e quarenta e uma para cada cem de Homero! A cada três palavras, duas eram de Homero, e uma tinha saído da cabeça de Monti.
E quem é esse tal Monti? Alguém que tenha algo a nos dizer? Alguém que fale a língua que devemos aprender? Pior ainda: escrevia numa língua que não se falava nem na época dele.
Um dia, eu estava ensinando geografia a um menininho que tinha acabado de reprovar um ano da media de vocês. Não sabia nada de nada, mas quando ia dizer Gibraltar dizia Colunas de Hércules.12
Já imaginou ele na Espanha tentando comprar um bilhete de trem?
hierarquia das urgências
Se a escola não tem tempo, cumprem-se apenas as urgências do programa.
Joãozinho, o filho do médico, tem tempo para ler até novelas. Gianni não. Ele escapou das mãos de vocês aos 15 anos. Está na fábrica. Não precisa saber se foi Júpiter quem pariu Minerva, ou o contrário.13
No seu programa de língua italiana, mais convinha ler o contrato de um metalúrgico. A Sra. já leu? Não tem vergonha disso? Esse contrato é a vida de meio milhão de famílias.
Quem diz que vocês são cultos são vocês mesmos. Leram todos os mesmos livros. Ninguém exige a vocês nada de diferente.
garotos infelizes
Na prova de educação física o professor jogou uma bola na nossa direção e disse: "Joguem basquete". Não sabíamos. O professor nos olhou com desprezo: "Garotos infelizes".
Ele também é como vocês. O que parecia importante para ele era a habilidade em um ritual convencional. Disse ao diretor que não tínhamos "educação física" e queria que nós voltássemos em setembro para fazer a prova de novo.
Cada um de nós era capaz de subir num carvalho. Chegar no alto, soltar as mãos e, a golpes de machado, derrubar um galho de cem quilos. Depois, arrastar o galho pela neve até a porta de casa, aos pés da nossa mãe.
Me contaram a história de um sujeito em Florença que desce de casa de elevador. Ele comprou uma outra geringonça caríssima e finge que rema dentro de casa. Para ele vocês dariam dez em educação física.
Latim em Mugello
Naturalmente, sabíamos pouco de Latim. A Câmara de Deputados já tinha enterrado o Latim dois anos antes.14 Justo naquele ano, tinha deixado de ser obrigatório em Oxford e em Cambridge.15
Mas os camponeses de Mugello tinham que saber tudinho. Os professores caminhavam entre as escrivaninhas solenes como sacerdotes. Protetores da chama extinta.
Eu arregalava os olhos vendo aquela gente estranha. Nunca tinha encontrado nada parecido.
A nova scuola media
em suas mãos
Lemos a lei e o currículo da nova media.
A maior parte das coisas que estão escritas ali nos parecem boas. E além disso há o fato de que a nova media existe, é única, é obrigatória, e desagradou a direita. É um fato positivo.
Só dá tristeza saber que ela vai estar nas suas mãos. Vocês vão tornar ela classista igual à antiga?
o horário
A antiga media era classista sobretudo por causa do horário e do calendário. A nova não mudou nem um, nem outro. Continua uma escola feita sob medida para os ricos, para aqueles que têm cultura em casa e vão à escola só para apanhar diplomas.
Mas há um fio de esperança no artigo 3. Ele institui pelo menos dez horas semanais de atividades extra-curriculares pós-escola. Logo em seguida o mesmo artigo oferece a vocês a escapatória para não fazê-las: o pós-escola será aplicado "após confirmação das possibilidades locais". Então a coisa está mais uma vez em suas mãos.
aplicação
No primeiro ano da nova media o pós-escola estatal funcionou em 15 dos 51 municípios da província de Florença.
No segundo ano em 6 municípios, alcançando 7,1% dos alunos. No ano passado foram 5 municípios, ou 2,9% dos alunos.16
O pós-escola municipal já não existe mais.17
Vocês não podem acusar os pais. Eles perceberam que vocês não estavam afim. Senão, servis como são, teriam mandado os filhos não só para o pós-escola, mas até para dormir na casa de vocês.
contrário
O prefeito de Vicchio, antes de retomar o pós-escola municipal, perguntou o parecer dos professores estatais. Chegaram 15 cartas. Treze contra e duas a favor. O motivo recorrente era que, se o pós-escola não pode ser bem-feito, é melhor não fazer.
Os garotos da cidade estavam nos bares e nas ruas. Os do interior, no campo. Com uma situação dessas, o pós-escola não tem como ser algo ruim. É de todo bom. Até aquele aborto que vocês chamam de escola é bom.
Se são contra o pós-escola, é melhor vocês não darem bandeira. O pessoal é malicioso. Podem suspeitar que, à tarde, vocês dão aulas particulares aos filhinhos de papai.
África do Sul
Há outros que simplesmente odeiam a igualdade.
Um diretor de Florença disse a uma senhora: "Não se preocupe, pode mandá-lo para cá. A minha media é a menos unificada da Itália".
É muito fácil trapacear o povo soberano. Basta separar numa turma os garotos "do bem". Não importa conhecê-los pessoalmente. Basta olhar o boletim, a idade, a residência (campo, cidade), lugar de origem (norte, sul), a profissão do pai, as recomendações.
Assim, na mesma escola convivem duas, três, quatro medie diferentes. A "A" é a "Antiga Media". Aquela que flui bem. Os melhores professores brigam por ela.
Um certo tipo de pai se esforça bastante para colocar seu filho ali. Na "B" um pouco menos, e assim por diante.
o Dever das cotoveladas
São todos gente honrada. O diretor e os professores não fazem isso por si próprios; fazem pela Cultura.
Nem mesmo os pais fazem aquilo por si. Fazem pelo Futuro da criança. A criança abrir caminho a cotoveladas, isso não pode, mas fazer isso pelo próprio filho logo vira um dever sagrado. Teriam vergonha de si mesmos se não o fizessem.
desarmados
Os pais mais pobres não fazem nada. Sequer suspeitam que exista esse tipo de coisa. Pelo contrário, ficam emocionados. Na época deles, no campo, a media ia só até o terceiro ano.
Se as coisas não dão certo, é porque a criança não foi feita para estudar. "Foi o Professor quem disse. Que homem educado. Pediu-me para sentar. Mostrou o boletim. Um exercício cheio de erros. A inteligência não é para nós. Paciência. Ele vai para o campo, como nós".
Estatística
no âmbito nacional
A essa altura, a Sra. vai protestar dizendo que nós fizemos os exames em escolas particularmente desfavorecidas. E que de fora também, nós recebemos justamente apenas os piores relatos. A Sra. conhece dezenas de casos tão verdadeiros quanto os nossos, mas que demonstram o contrário.
Então, vamos fazer assim: nós e a Sra. vamos abandonar as nossas opiniões demasiado apaixonadas e vamos descer ao terreno científico.
Vamos recomeçar a nossa discussão do zero, mas agora com números.
inapto para os estudos
Quem ficou encarregado das estatísticas foi o Giancarlo. Tem 15 anos. É mais um daqueles garotos da cidade que vocês condenaram como sendo inapto aos estudos.
Conosco, ele trabalha bem. Por exemplo, agora faz quatro meses que ele está imerso nesses números. Nem a matemática é árida demais para ele.
O milagre educacional que operamos nele tem uma receita bem precisa.
Demos a ele a oferta de estudar por uma causa nobre: sentir-se irmão dos 1,031,000 repetentes iguais a ele e gozar os prazeres da vingança, sua e deles.
[...]
Traduzido por Gabriel Carvalho.
Polianski = não sabemos quem é, mas deve ser um educador famoso.
pedagogia = a arte de educar os jovens.
psicofisio... = metade de um palavrão que aquele professor usou e que não nos lembramos por inteiro.
Incluímos na conta também aqueles que vivem pior que os camponeses: caçadores, pescadores, pastores (Compendium of Social Statistics, ONU, Nova Iorque, 1963).
livro de anatomia = livro que os estudantes de medicina usam. Estuda o corpo humano pedaço por pedaço.
Por exemplo, no ano acadêmico 1962-63, no primeiro ano da media, 65,2% dos meninos foram aprovados, e 70,9% das meninas. No segundo ano, 72,9% dos meninos e 80,5% das meninas. (Annuario Statistico dell’Istruzione, 1965, pág. 81).
A Pequena Vendedora de Fósforos = história de Hans Christian Andersen, escritor dinamarquês do século XIX.
La neve fiocca fiocca fiocca = verso de um poema de Giovanni Pascoli.
Queríamos colocar aqui a palavra que saiu da nossa boca aquele dia. Mas o editor não quer imprimir ela.
Na verdade, os honoráveis constituintes pensavam nos alemães do Tirol do Sul (Alto Ádige) mas, sem querer, estavam pensando no Gianni também.
corujas, pedrinhas e leques = em Francês, essas palavras são mais difíceis do que as outras. Os professores à moda antiga obrigam os alunos a decorarem elas desde o primeiro dia de aula.
Grenoble = cidade na França.
albergue = hotel para jovens
Loire = um rio da França.
Homero = antigo poeta grego, autor da Ilíada e da Odisseia.
Vincenzo Monti = poeta do século XIX. Traduziu a Ilíada em Italiano.
Colunas de Hércules = é assim como os poetas antigos chamavam o estreito de Gibraltar. É a passagem entre o Mar Mediterrâneo e o Oceano Atlântico.
Júpiter e Minerva = os gregos antigos acreditavam, ou fingiam acreditar, em vários deuses. Entre outras coisas, diziam que um homem (chamado Júpiter) tinha parido uma menina (chamada Minerva).
A lei que instituiu a nova scuola media é de dezembro de 1962.
Cambridge e Oxford = antigas universidades inglesas reservadas aos ricos. Até pouco tempo atrás, não podia estudar lá quem não sabia Latim.
"La nuova scuola media al termine del primo triennio". Centro de estudos da província de Florença, junho de 1966.
"... após algumas experiências corajosas nos últimos anos, não mais repetíveis devido ao parecer contrário das autoridades tutelares, não existe mais nenhum pós-escola sob administração municipal" Ibid., pág. 5.