O OLHO DO MESTRE
por Joseph Losey, sobre Brecht. Cahiers du Cinéma nº114, dezembro de 1960.
O OLHO DO MESTRE
por Joseph Losey
L’oeil du maître, Cahiers du Cinéma nº114, dezembro de 1960.
Por quase vinte e cinco anos, Bertolt Brecht inspirou minha vida e minha obra, mas só muito recentemente voltei a ele, à sua obra, ao trabalho realizado em comum, e à influência que ele exerceu sobre mim. Não que esse trabalho e essa influência não tenham me marcado: simplesmente eles sempre foram, de alguma forma, o próprio ar que eu respiro, muito concreto, em devir perpétuo.
Ao longo desses últimos anos, foram escritos mais do que poucas bobagens e absurdos sobre o homem Brecht e suas teorias teatrais. No início de sua carreira, certamente ele próprio deu uma contribuição não-negligenciável às especulações infindáveis de seus atuais bajuladores, todo esse grupo de peixes pequenos, trabalhadores da última hora que escondem o jogo e se intrometem em todos os lugares, esses descobridores de talentos, esses fiéis, esses familiares, esses coveiros, todos esses seguidores que seguem apenas para estarem na corrida e não para atingirem algum objetivo.
Quem são os verdadeiros discípulos? Como reconhecê-los? Classifico-os em duas categorias: de um lado os homens de ação, e principalmente aqueles que possuem o que eu chamo de "o olho"; do outro, aqueles que sabem, nas profundezas de si mesmos, no coração, nas tripas, nos ossos, que o contato entre os homens, por não importa qual antena, se dá no nível mais elevado. Quando Brecht é bem interpretado, os espectadores, na sua quase totalidade, o sabem. Os herdeiros e os sucessores de Brecht – esses outros "olhos" – sabem. Alguns trabalharam ao lado de Brecht, ou alhures em outras partes do mundo, na mesma época, solitários como ele e separados de tudo. Alguns ainda, talvez menos dotados, menos perseverantes, menos afortunados, sabem. Brecht, além de seu gênio, teve sorte com ele.
Escrever sobre Brecht significa para mim escolher dentre um monte de recordações. Isso me toca ainda mais porque as circunstâncias nos reaproximaram várias vezes, às vezes um pouco ao acaso, às vezes de forma muito contínua, até aquele derradeiro ano entre 1946-1947, quando trabalhamos juntos quase ininterruptamente. Não tenho nenhuma intenção de acrescentar meus comentários delirantes aos elogios escritos e falados já existentes, não pretendo me unir aos fiéis do culto (dito isso, não tenho nada contra estudos sérios como o de John Willett, malgrado as lacunas, imprecisões e erros que creio ter encontrado aqui e ali).
O HOMEM
Existe em Galileo Galilei uma das mais belas cenas já concebidas e escritas para o teatro: a posse do cardeal-cientista Barberini, elevado ao papado. Essa cena me permitirá tropeçar admiravelmente em quase tudo que tenho em mente sobre Brecht. É um exemplo perfeito da maneira como em Brecht teatro e cinema se reúnem, e a ilustração de seu prodigioso sentido visual. Lembremos, para aqueles que desconhecem a peça, que nela vemos Barberini revestir progressivamente e com grande pompa os ornamentos de sua nova função, enquanto o cardeal-inquisidor o auxilia nessa cerimônia e lentamente, traiçoeiramente arranca-lhe a autorização para torturar Galileu. Barberini, o homem e o cientista, desaparece à medida em que ele veste o manto papal, seus "nãos" tornam-se mais e mais fracos e finalmente ele cede a todas as demandas da Inquisição. A cena é quase unicamente visual, poderíamos compreendê-la praticamente sem a ajuda do menor diálogo.
Brecht chegou. Suas idéias estavam no ar ao redor do mundo. Nos EUA um pouco mais tarde, na URSS um pouco antes, cada país a seu tempo: mas em todo lugar as mesmas ideias. Ele sabia muito bem ao escrever Galileo que "jamais houve um livro que um único escritor seria capaz de escrever". Nem uma peça de teatro. Deus sabe, apesar disso, que ele não ignorava – ver novamente o Galileu – o papel crucial que um homem de gênio pode desempenhar na evolução da civilização em uma determinada época e lugar. Mas ele estava absolutamente convencido da sua própria missão, do seu destino, daquilo que, creio eu, ele teria chamado o seu "job". Nenhum resquício de arrogância nele, simplesmente a certeza de quem acredita ter encontrado o seu caminho, a confiança em seu "olho". O olho individual. Nós jamais tivemos que discutir isso entre nós. Nós sabíamos e víamos como um só homem. Durante todo o tempo em que trabalhei com ele, sequer uma única vez ele mencionou a palavra "teoria".
Um dia, no entanto, enquanto eu me preparava nervosamente para a primeira leitura de Galileu com os atores, me pus a ler alguns dos escritos teóricos de Brecht e algumas dissertações laboriosas e acadêmicas de alguns brechtianos da época (1946-1947), a fim de doutrinar o meu elenco. Bem no meio de uma breve introdução cuidadosamente preparada, logo me dei conta da inutilidade e da pretensão de seus esforços.
Brecht...
Sua máscara mortuária me observa sarcasticamente em meu escritório. Ele é o menos morto dentre os mortos que já conheci. A máscara é exatamente à imagem do homem que ele foi em vida:
Ele era o homem mais penetrado pelo espírito do teatro que eu já conheci.
Ele era o mais profissional dos "profissionais".
Ele via tudo – ele via em você – ainda que não tivéssemos jamais tido uma conversa "pessoal".
Ele era intransigente, mas flexível e aberto.
Ele tinha o fervor do puritano sem nada do gosto pela autopunição e do sentimento de culpa. Como ele evitara esse duplo perigo, nunca vou saber.
Ele era um indivíduo em meio a homens organizados e amantes da organização. Ele admitia a necessidade de organização, mas nem por um instante abdicou de sua responsabilidade e visão individuais.
O humor de Brecht era extraordinário. Ele sempre dava piscadelas, frequentemente com malícia. Ele dava risadinhas como uma garota adolescente, mas a sua risada, enorme, seca, quase obscena, jorrando por trás de um repugnante charuto mastigado, contaminava tudo. Ele sempre tinha o seu charuto à mão, às vezes para não morrer de rir, às vezes para melhor martelar as suas tiradas mordazes nos dias de irritação.
Por outro lado, Brecht trabalhando era um homem calmo. Ele sabia escutar. Ou ficar sentado tranquilamente, ainda que às vezes a sua impaciência em esclarecer, corrigir ou complementar o levasse a movimentos desordenados, sua voz explodindo de repente ou cessando bruscamente.
Um sentido de disciplina como nenhum outro. Mais uma vez essa combinação de uma energia ilimitada e a arte do relaxamento. Um uso rígido do tempo. Horários constantemente interrompidos ou prolongados não importa quando, se necessário. Em seguida, uma soneca. Esticado de costas, seu inseparável boné cobrindo os olhos.
Objetivo perante não importa qual espetáculo, mas nunca insensível. Homem apaixonado por excelência: capaz de uma raiva e de uma fúria repentinas, profundamente engajado com suas opiniões, intolerante com aqueles que eram incapazes de ver, sentir ou apreciar. Mais preocupado talvez com o grupo do que com o indivíduo. Ao longo de sua vida, ele devorou os seres: cada pessoa, cada coisa servia à sua arte.
Sua aparência foi muito frequentemente descrita, suas fotos são conhecidas e assemelham-se impressionantemente a ele. Homem de baixa estatura, nervoso, construído como um dançarino, os olhos tão móveis quanto as mãos, sempre velozes. Seu macacão perfeitamente ajustado, de brim, simples, imitando o uniforme do operário, mas ajustado de maneira muito chique (sempre o olho).
OLHO E ESTILO
Este artigo começa a tomar forma por conta própria. Meu desejo de selecionar e organizar, temo, já foi esquecido há tempos. Depositar no papel apenas uma parte da minha experiência pessoal e da minha tomada de consciência acerca de Brecht exigiria meses de trabalho e não seria mais revelador do que essas poucas lembranças colhidas ao acaso. Na verdade, eu sempre considerei Brecht e minha colaboração com ele como certas. Nunca tentei analisá-lo, nunca busquei sua aprovação, não mais do que ele a me concedeu. Ele aceitava. A vida de Brecht é repleta de experiências estranhas, assim absorvidas e utilizadas: alguns não teriam sido nada sem ele, outros seguiram seus caminhos por conta própria. Nenhum, creio eu, sofreu; alguns adquiriram uma nova dimensão, a "trupe".
John Hubley, o artista que desenhou os agora mundialmente famosos croquis de Galileu, contribuiu tanto quanto qualquer outro colaborador de Brecht para fixar exatamente a imagem que o autor tinha de seu personagem. E porém, nunca vi seu nome ser mencionado. Sem ele, nenhuma das minhas duas produções da peça na América, não mais que a última, no Berliner Ensemble, teriam sido tudo o que de fato foram. Devo ainda mencionar George Tabori, que colaborou com Laughton e comigo na adaptação da versão nova-iorquina, encenada depois que Brecht deixou a América, com uma cena final mais desenvolvida a partir de notas deixadas por Brecht (a peça foi originalmente criada em Hollywood, em colaboração com o autor). E também Helen Weigel, anfitriã maravilhosa e colaboradora dos longos anos de exílio; o compositor Hanns Eisler, amigo e companheiro, escravo e colega. E me esqueço de alguns.
Nenhum dentre nós, parece-me, jamais sentiu que estava fazendo história trabalhando com Brecht. Não apenas porque ele tinha todo o direito de reivindicá-la para si (e o sabia), mas porque, além disso, literalmente, ele era a sua época. Nada de sua época escapava ao seu "olho" individual, fosse uma questão de observar a elegância da linha de um arco, a justeza de uma cor, a aresta viva de uma nota psicológica ou social. É daí que nasceu a nossa devoção inconsciente e é isso que ainda hoje explica certos entusiasmos. Não se pode imitar Brecht, a menos que se seja um enorme criador.
As peças de Brecht nos ensinam o teatro vivo, oferecem ao ator possibilidades inesgotáveis, são a suma da teatralidade. Elas observam a natureza, mas não a reproduzem. Brecht despoja o real de todos os seus ouropéis e em seguida o recria. Para atingir esse objetivo, somente a perfeição é aceitável:
Interpretação: Perfeição da observação e da execução. Um dia ele declarou acerca de um ator incapaz de simplesmente tirar uma moeda de seu porta-moedas e dá-la resmungando a um mendigo (Galileu) que "ele deveria ter observado mil jeitos de se dar dinheiro de todas as maneiras e em todas as circunstâncias, e armazenado-as em sua memória”.
Mas isso não significava naturalismo. A arte é maior do que a vida. Não há espaço para a covardia inglesa, o receio de forçar o jogo de cena, de exagerar, de "mostrar seus sentimentos". Se matam o seu filho, você deve senti-lo diretamente, na boca do estômago, como Weigel em Mãe Coragem. Mas, na verdade, o ator não sente neste momento: ele pensa.
Quando um ator que tinha o papel pouco importante de um monge no Vaticano, na cena em que os monges zombam de Galileo, forçado a esperar numa antessala, e de suas teorias sobre a curvatura da terra, quando esse ator então perguntou "Quais são as motivações para o meu comportamento?" enquanto imitava uma dança para mostrar que não dá para ficar de pé sobre uma bola giratória, Brecht, sentado ao meu lado, replicou: "Então o equilibrista na corda-bamba precisa de um motivo para não cair?". E estourou uma sonora gargalhada.
* * *
Sem método. Qualquer método. Estilo e conteúdo.
O símbolo de realidade escolhido deve ser perfeito. Não esquecerei jamais de uma cena grotesca, um dia por volta da meia-noite no escritório de Mike Todd, que produziria Galileu. Tínhamos nos encontrado na grande sala de reuniões da Universal em Hollywood: Todd, Brecht, Howard Bay (que era o nosso decorador), Jack Moss, sócio de Todd, e eu. Todd explicou que ele queria montar a produção com móveis renascentistas que seriam emprestados pelas oficinas de Hollywood... Brecht contentava-se em escutar, dando risinhos nervosos. Mas a partir desse instante, já não havia a menor chance de Todd fazer a peça. A única cadeira, que acabou substituindo todo o mobiliário renascentista em nossa produção, era simplesmente aquilo que chamamos coloquialmente de uma "cadeira de diretor", de tecido e madeira, perfeitamente industrializada. Por que essa substituição? Porque, por sua estrutura, nossa cadeira lembrava os assentos da época, porque ela era bela, porque o grão do tecido e da madeira tinham exatamente a tonalidade desejada, enfim, porque convinha.
Lembro-me de uma outra ocasião, um dia às quatro da manhã, depois de um ensaio com figurinos de Galileu, quando Brecht literalmente explodiu de raiva ao ver uma camada de verniz que tínhamos passado sobre a estrutura em madeira do cenário, nua, bela, funcional: “Vocês destruíram a textura da madeira!". O que estava correto; mas nós estávamos cansados demais para prestar atenção nisso; ele não. Raspamos a camada de verniz e a madeira recuperou a sua textura antes da estreia, que ocorreu à noite.
Esses exemplos poderiam ser multiplicados infinitamente. Apenas uma coisa conta: a perfeição, o estilo, o olho, a linha, a cor. Acho que me lembrarei para sempre – e talvez essa seja a principal razão pela qual Brecht e eu nos demos tão bem – me lembrarei não apenas da justeza da espiral de uma escada em caracol, mas também da linha do seu conteúdo e das intenções do autor. Nós "víamos" juntos. Mas Brecht me ensinou uma atenção escrupulosa aos detalhes em todas as áreas: imagens, palavras, gestos, movimentos, sons, música.
MINHA CARREIRA EM POUCAS PALAVRAS
Por volta de 1935 eu estava vagabundeando, desencantado, tentando aprender meu ofício. Eu já havia dirigido na Broadway. Eu chegara ao teatro em 1929, na hora do crash da bolsa, recém-saído da universidade. Na universidade, eu tateara o expressionismo com Bride for the Unicorn de Denis Johnston e Great God Brown de Eugene O'Neill. Embarquei para a Europa. Destino: Leningrado e Moscou, via Inglaterra e Escandinávia. Naquele ano, Moscou era para o teatro e para o cinema o que Florença fora nos anos 20 para Gordon Craig. O próprio Craig encontrava-se em Moscou, com recursos ilimitados à sua disposição para uma produção de Macbeth no Mali Theatre (apenas Craig chegou a vê-la). Havia também Brecht, Eisler, Lotte Lenya, estudantes da Vassar, a grande universidade feminina americana, Norris Houghton, Jay Leyda, Paul Strand, vários membros do Group Theatre incluindo Clurman e, acho eu, até mesmo Strasberg. Nosso protetor era o embaixador americano William Bullitt. Eu conheci Brecht e Eisler, eu ouvi Lenya cantar. Me pus a traduzir o Teatro Político de Piscator. Mas eu desconhecia tudo sobre eles, para dizer a verdade; quem eles eram, de onde vinham. Eu tinha ouvido falar dos estragos cometidos por Hitler, mas não da Berlim que os precedera.
O teatro em Moscou durante esse período era notável. Okhlopkov com seu teatro circular, retangular, hexagonal; Meyerhold brilhante e já um pouco decadente, etc. Eu retornei a Nova York para criar o "The Living Newspaper"1. Era teatro brechtiano, mas eu não sabia. Brecht, durante uma primeira estadia na América, viu e adorou. E, apesar da sua austeridade quanto à cor, sua preferência pela luz branca e pelas cores neutras, ele apreciou particularmente a passagem em que vesti meus proletários de fúcsia e rosa. Me revoltei contra a ideia de que a massa proletária é visualmente monótona, de que o trabalhador só gosta de cinza. Lembro-me de Brecht, as pernas cruzadas no piso da sala, seu boné, seu charuto e sua roupa austera se destacando dos cetins e Noguchis que decoravam a casa da minha mulher, que era então Elizabeth Hawes, explicando a ela as suas teorias, articulando com o seu "olho" que era também o nosso olho. Mas tudo isso não significa grande coisa.
Esse Brecht desapareceu da minha vida até nos reencontrarmos muito depois na capital do cinema, em Hollywood. Íamos montar Galileu juntos. Eu o encontrei na sua pequena casa pré-fabricada em Santa Mônica, marcada pela sua presença e pela de Helen Weigel, com o piso de madeira bem arrumado, as gravuras chinesas, o piano vertical com suas ranhuras, a caixa cheia de manuscritos, a bela porcelana inglesa que "Helle" (Helen Weigel) tinha desenterrado no mercado de antiguidades. Nada fora desperdiçado durante o exílio. O trabalho continuava. Ele aceitava as consequências de suas convicções e estava sempre pronto, na primeira oportunidade, para se lançar em uma produção ou montar seu teatro. Eu nunca ouvi ninguém se queixar.
Quando Brecht foi convocado a Washington como um dos “dez” para testemunhar, eu o acompanhei e passamos a noite inteira caminhando pelas ruas desertas desta cidade-mausoléu, discutindo a tarefa terrível que o aguardava no dia seguinte, quando ele deveria comparecer perante o tribunal de "Bauern", presidido pelo deputado Parnell J. Thomas. Mais tarde, Thomas foi condenado por desvio de dinheiro e foi se juntar às suas vítimas na prisão. A calma, o humor, a fineza e o brio com os quais Brecht se portou nesta ocasião pertencem agora à história. Eu o acompanhei até o seu avião, que o levou à Suíça e eventualmente à Alemanha. Nossa correspondência tornou-se esparsa. Eu nunca mais o vi.
Brecht enviou-me um presente, embrulhado cuidadosamente em celofane, acompanhado por uma mensagem verbal de Weigel: "Diz ao Joe que ele deveria relaxar!" (Tell Joe he should relax!). O presente consistia em um cachimbo de ópio, magnificamente esculpido. É o contato mais pessoal e mais íntimo que tive com ele. Logo depois, Laughton e eu trabalhamos na produção nova-iorquina de Galileu, depois Laughton desapareceu com uma discrição que ele cuidou de mencionar em sua autobiografia. Brecht não teria ficado surpreso com o jeito monstruoso de Laughton em distorcer os fatos e de não responder a Weigel nem a mim quando noticiaram a morte de Brecht. Brecht era um grande romântico; quando se tratava de descobrir talentos, ele os procurava com paixão. Mas ele nunca cometeu o erro de identificar talento com caráter. É maravilhoso quando essas duas qualidades são encontradas no mesmo homem, mas isso raramente acontece. Brecht era antes de tudo um pragmático: “Isso funciona? O que posso extrair disso?"
Brecht era impiedoso, mas não tinha nada de sádico. Ele transbordava de admiração e paixão pelo conteúdo, pela forma, pela estrutura da vida dinâmica, dialética, que moldara seu olho individual. A inscrição citada como epígrafe de Galileu, que é emprestada dos discorsi2 de Galileu, se aplicaria bem ao próprio Brecht:
"Considero a Terra nobilíssima e admirável pelas tantas e tão variadas alterações, mutações e criações que nela ocorrem incessantemente."
"DIE WAHRHEIT IS KONKRET"
["A VERDADE É CONCRETA"]
Esse aforismo Hegeliano estava pregado em letras maiúsculas numa parede nua perto da mesa de desenho que constituía o escritório de Brecht em seu apartamento nova-iorquino, 57th Street, onde eu morei por seis meses em 1946. Eu o interpretei como significando para Brecht não que a verdade é absoluta, mas que ela é precisa, que existe uma boa maneira de acessá-la: justeza da observação, economia dos meios de comunicação.
Essa economia e essa precisão são tomadas por alguns como frieza e inconsistência. Dizem que Brecht no teatro é chato, frio, fastidioso, pedante. Sim, ele pode ser chato, se os atores e o diretor são chatos. Fastidioso, se não aproveitam as oportunidades que Brecht os oferece para enriquecerem e florescerem no palco. Inconsistente, se não se busca a exatidão desejada na linha, no gesto, no ritmo, na composição, na textura. Pedante, se detém-se apenas no aspecto didático de Brecht. Brecht transmitia a sua mensagem em termos de poesia, pela beleza da forma, da palavra, da ideia. Ele era um autêntico materialista dialético, um marxista. Ele compreendia o processo contínuo de mudança e interação do vivo. Ele sabia que viver é "tornar-se".
O teatro e o "olho" brechtianos só parecem frios aos que são incapazes de ver, aos que confundem despojamento com ausência de gosto. O seu apartamento em Nova Iorque era recoberto de gesso branco, sem decoração, as estantes de sua biblioteca feitas à mão com tijolos apoiados uns sobre os outros e algumas tábuas. O divã e as cortinas eram de um tecido grosso de Hesse. A iluminação vinha do teto, a luz era branca, crua. A decoração era composta de um simples pergaminho chinês, admirável. A ordenação e a escolha dos objetos era irrepreensível, o olho não cessava de vagar pelo apartamento. Ele não se perdia, não se irritava, podia se concentrar em um ponto preciso. O aspecto visual do teatro de Brecht é comparável ao melhor da contribuição de Frank Lloyd Wright e Mies Van der Rohe na arquitetura. Brecht tinha a arte de justapor contrastes, de demonstrar pelo raciocínio dialético, pela verdade irrefutável da sua observação. O seu próprio estilo, enquanto homem e enquanto artista, exige um estilo equivalente da parte de seu diretor e dos atores. Brecht, o homem mesmo, tanto quanto o artista, era a essência do estilo, isto é, do que é correto. Tudo isso pode parecer um pouco místico; não é.
Como toda arte verdadeiramente individual, a de Brecht é intransmissível aos seus discípulos, mas apesar disso a sua influência permanece ininterrupta e considerável, porque ela é parte integrante de sua época. Mas a imagem e a palavra são únicas, insidiosas, não podemos escapar delas, nunca cessam de agir. Brecht frequentemente foi denegrido por uma citação em que afirma que não basta saber o que se quer dizer, é preciso também ter "astúcia" para dizê-lo. Substitua astúcia por: talento, espírito, arte, "olho". Que importa que o traje do príncipe em Galileu tenha sido copiado do retrato de um alfaiate da época ("The Tailor" de Moroni, que encontra-se na National Gallery de Londres)? Ele era justo. Que importa que vários personagens estivessem vestidos de acordo com Brueghel, embora a ação se passasse na Florença dos Médici? Não importa nada, porque o resultado era justo.
BRECHT E O CINEMA
Quais são as relações entre eles? Brecht era um apaixonado pelo cinema, particularmente durante sua estadia na América. Ele, Weigel e Eisler frequentemente o visitavam várias vezes ao dia. Suas próprias experiências não foram muito felizes. Os Carrascos Também Morrem foi reescrito por John Wexley, que não poderia estar mais distante da sensibilidade de Brecht, do que ele desejava e dos valores que representava. O Puntila de Cavalcanti foi uma catástrofe. Os filmes inspirados em Brecht que tiveram o maior sucesso foram as duas versões, francesa e alemã, de A Ópera dos Três Vinténs (Dreigroschenoper). Mas eu sei que Brecht não gostou nem de uma nem da outra. Não sei bem o porquê, já que nunca discuti isso com ele. Eu suspeito que ele as achava melosas, românticas, confusas em seu conteúdo, como de fato eram.
O controle que Brecht demanda e exige é tão mais difícil de se obter no cinema – porque o instrumento é mais difícil de manejar, porque o sistema econômico é mais rígido – que um equivalente estilístico exato ainda não foi encontrado. Ainda não houve uma tentativa; eu acho que pode sim ser feito. Brecht nunca tentou. Talvez ele tivesse medo de o fazer. Nesse caso, ele tinha razão em ter medo. A solução não será fácil de encontrar, se algum dia a encontrarmos, e espero que um dia encontremos. Talvez com Galileu. Mas não pela maneira realista (naturalista), com exteriores "reais" em Florença e Roma; a realidade deverá ser cuidadosamente reconstruída e selecionada. A aproximação mais honrosa que conheço do estilo visual brechtiano até hoje seria o último filme de Ingmar Bergman, A Fonte da Donzela. O estilo visual de Bergman, sua maneira de selecionar, sua noção da época e dos momentos em que a história parece em suspensão, esses elementos são brechtianos. A forma é brechtiana, sem o conteúdo.
Quais são as particularidades do teatro brechtiano e do homem, tal como o conheci, que poderiam ter uma relação direta com o cinema e que influenciaram diretamente a minha atividade cinematográfica?
O despojamento da realidade e a sua reconstrução precisa através de uma seleção de símbolos-realidade.
A importância da precisão do gesto, da textura e da linha nos objetos.
A economia do movimento, de atores e da câmera; não mexer nada sem um objetivo. A diferença entre calma e imobilidade.
O controle do olho pelo uso exato das objetivas e dos movimentos de câmera.
A fluidez da composição.
A justaposição de contrastes e a contradição, graças à montagem e ao texto; são o jeito mais simples de se obter o tão famoso "efeito de distanciamento".
A importância da palavra, do som, da música exata.
A exaltação da realidade para enobrecê-la.
A extensão da visão do olho individual.
* * *
Como Galileu, Brecht amou a reflexão mais do que qualquer homem que conheci. Ao contrário de Galileu, ele era moderado na comida e na bebida mas, como Galileu, imoderado no trabalho e no amor. Me contaram que os editores da revista de teatro inglesa Encore perdem leitores toda vez que publicam um artigo sobre Brecht; talvez publiquem textos de maus autores. Não devemos deixar que Brecht seja montado e encenado por pessoas que não o compreendem, e nem exigir que estas escrevam sobre ele. No caso destas linhas arriscarem aumentar o pântano de merda que cerca Brecht hoje, eu gostaria de concluir dando uma lista das coisas que ele não era:
Ele não era um teórico; ele pertencia ao teatro vivo, sempre em mudança.
Nem um político, ainda que fosse consciente do papel central da política na vida organizada contemporânea.
Não frio, mas austero, mas de forma alguma do tipo "esmagado pela dor".
Germânico ele era, certamente, mas nunca desprovido de humor.
Egoísta também, mas em plena consciência.
De forma alguma dogmático, ainda que fosse teimoso como uma mula. Sólido como uma pedra, defendendo em todas as circunstâncias a originalidade, a justeza e a verdade da sua visão. E o que coloco acima de tudo, e pelo que o estimo e honro no teatro e no cinema: ele não era um desses que ficam "em cima do muro", incapazes de decidir quando devem afirmar a visão individual pela qual todo verdadeiro artista triunfa ou quebra a cara.
Ele não era separado da vida, mas participava dela a todo instante. Sua vida e sua arte eram inseparáveis, mas em certo sentido a arte vinha antes da vida: isto é, ela assumia a primazia quando se tratava de seres humanos. Quanto à ética que decorre disso, bem, a vida se desenvolvia e crescia na sua arte, como em qualquer artista para quem a arte possui uma função purificadora. Às vezes, pessoas são sacrificadas. Se não Brecht, então um terceiro, como ele mesmo diria. E no entanto, que perda sofreu o mundo quando seu coração parou de bater!
Ele estava apenas começando, e quando será substituído?!
Ele estava do lado da vida e da beleza, do eterno milagre do crescimento e da mudança.
Ele era um artista profundamente moral.
A luz da ciência está com você.
Cuide bem dela e um bom uso lhe dê.
Cuidado, não deixe a chama cair
Ou a todos nós ela irá consumir.3
(Galileu, e a cortina se fecha)
– Joseph LOSEY.
(Traduzido para o Francês por Louis Marcorelles)
"The Living Newspaper" foi criado na prática por mim, seu diretor, Arthur Arent, seu autor principal, e Morris Watson, um jornalista. Era um teatro popular, a preços populares, subsidiado pelo governo federal e que nos dava uma extraordinária liberdade de conteúdo e experimentação: fazíamos uso de circo, music-hall, balé, projeções, música, mas conseguíamos de alguma forma fundi-los em um todo unificado a cada vez por um tema diferente (por exemplo, o programa agrícola lançado por Roosevelt sob o título "Triple-A Plowed Under", ordens judiciais historicamente usadas contra o sindicalismo em "Injunction Granted"). Infelizmente, o Federal Theatre e seu subsídio cessaram antes que pudéssemos ter realmente criado um estilo. Mas os procedimentos e o caráter altamente cinematográfico do "Living Newspaper" tiveram uma influência incalculável no teatro americano.
Mais tarde, alguns de nós – eu, Nicholas Ray, Kazan e outros cujos nomes são bem conhecidos no cinema – tentaram continuar o experimento em uma empresa de teatro privada que batizei de "The Social Circus". Ainda tenho os projetos deste teatro; infelizmente, nunca passamos do estágio de preparação.
[N. do T.] Na verdade, é do Dialogo sopra i due massimi sisteme. Tradução nossa, do Italiano: "io per me reputo la Terra nobilissima ed ammirabile per le tante e sí diverse alterazioni, mutazioni, generazioni, etc., che in lei incessabilmente si fanno".
[N. do T.] Tradução nossa a partir da versão em Inglês de Charles Laughton: "May you now guard science' light. / Kindle it and use it right, / Lest it be a flame to fall / Downward to consume us all."